Anos 70. O Brasil respirava sob o peso do AI-5 e da censura oficial. As redações eram salas de espera do medo: textos riscados a lápis azul, telefonemas interrompidos, repórteres desaparecidos. No Brasil a patrulha rondava bares, universidades, redações. Mas onde se cultivava o silêncio, a música abriu brechas.
A MPB juntando samba, bossa nova, frevos e maracatus, o Clube da Esquina lançando seu manifesto sonoro, provando que música e poesia podiam desafiar generais. Eu, adolescente, via no vinil um país possível. E foi nessa atmosfera que mergulhei no rádio e depois no jornalismo: entre chumbo tipográfico e chumbo grosso da repressão, aprendi que a palavra é resistência.
No rádio, vivi a astúcia, entonações que denunciavam a insatisfação com a política. Uma canção de Chico ou Gil entrava no ar como quem contrabandeava esperança. A censura lia textos, mas não decifrava silêncios e pausas.
Ao mesmo tempo, aprendi outra lição de liberdade: a dos corpos. Enquanto soldados ocupavam as ruas, nos quartos descobríamos que o desejo era um território onde a ditadura não entrava. Sexo livre, poesia e MPB formavam nossa barricada íntima.
O mundo mostrava sinais. Em 1973, o golpe no Chile acendeu o alerta. Em 1975, o corpo de Vladimir Herzog denunciava que aqui também se matava em nome da ordem. E em 1979, a anistia trouxe a sensação de que o pior havia ficado para trás.
Mas não ficou. Vieram os anos 80 e 90, com sua redemocratização ainda incompleta. As fardas saíram de cena, mas uma nova forma de patrulha tomou lugar: a do pensamento único de esquerda, onipresente em redações, universidades e sindicatos. A censura mudou de farda, vestiu jeans e camiseta, mas continuava implacável. Quem discordasse do dogma progressista era visto como reacionário, quem não se rendesse ao novo catecismo era empurrado para fora do debate.
Era a ditadura do consenso ideológico: menos brutal que a dos quartéis, mas igualmente sufocante. Vi colegas serem marginalizados não por desafiarem generais, mas por questionarem narrativas que se tornaram intocáveis. A liberdade de imprensa, tão sonhada, agora tinha um dono, e o dono atendia pelo nome de hegemonia cultural.
Nesse terreno contraditório, continuei. Jornal, rádio, televisão: vivi a paixão do microfone, a adrenalina da reportagem, a responsabilidade da crônica. Vi Belo Horizonte se expandir, a Savassi se modernizar, o Maletta continuar como catedral da boemia. BH seguiu sendo palco e trincheira, mas a batalha já não era contra censores fardados, e sim contra a arrogância de quem acreditava ter o monopólio da verdade.
Hoje, olhando para trás, sei que minha vida profissional foi feita de riscos e reinvenções. Jovem, enfrentei a ditadura militar. Adulto, enfrentei a ditadura do pensamento único. Em ambos os casos, a ferramenta foi a mesma: a palavra.
A vida ensinou-me o essencial: a liberdade não é de direita nem de esquerda, não é concessão de governo nem monopólio cultural. Liberdade é prática diária, frequência que precisa ser sintonizada todos os dias, porque sempre haverá alguém querendo girar o botão.