Há perguntas que, quando formuladas em voz alta, dispensam resposta. Elas incomodam justamente porque revelam o óbvio. Questionar se uma instituição da República pode se colocar acima do sistema de freios e contrapesos já não soa como exercício acadêmico, mas como constatação de um hábito que foi, aos poucos, naturalizado. O espanto verdadeiro não está mais no gesto, mas na normalidade com que ele é recebido. O país parece ter perdido a capacidade de franzir a testa.
O Supremo Tribunal Federal ocupa, por desenho constitucional, um lugar central na democracia brasileira. É o guardião da Constituição, o árbitro final dos conflitos institucionais, o último recurso contra abusos do poder. Esse papel exige autoridade, firmeza e independência. Mas exige também algo menos comentado, e talvez mais raro: autocontenção. Sem ela, a força que protege passa a ser a mesma que desequilibra.
Nos últimos anos, consolidou-se uma dinâmica curiosa. Decisões de grande impacto político e institucional se acumulam, quase sempre justificadas por interpretações sofisticadas da Constituição, por leituras extensivas de princípios ou por urgências circunstanciais. Do ponto de vista técnico, muitas delas são defensáveis. Do ponto de vista republicano, nem sempre são confortáveis. O problema não está apenas no conteúdo das decisões, mas no método e, sobretudo, na ausência de limites claros sobre quem vigia o vigilante.
Quando episódios sensíveis vêm à tona, a resposta institucional costuma seguir um roteiro conhecido: notas protocolares, explicações formais, deslocamento do debate do essencial para o periférico. O foco deixa de ser o ato e passa a ser a narrativa. Tudo é dito com correção jurídica, elegância vocabular e aparente neutralidade. Falta apenas o elemento que não cabe em parágrafos bem redigidos: o reconhecimento de que há zonas cinzentas que exigem mais prudência do que convicção.
O Supremo, que deveria funcionar como limite, passou a operar muitas vezes como medida de si mesmo. Decide, interpreta, esclarece, justifica, e encerra. O ciclo se fecha sem mediação externa, sem contraditório institucional efetivo, sem constrangimento público. Trata-se de um arranjo eficiente, mas perigoso. Não por ilegalidade explícita, mas por erosão silenciosa do equilíbrio entre os Poderes.
No meio desse ambiente, chamou atenção a resposta protocolar do ministro Alexandre de Moraes, ao explicar a reunião realizada no Banco Central do Brasil. Em tom burocrático e cuidadosamente asséptico, a carta desloca o eixo do debate para uma agenda genérica, sustentando que o encontro teria tratado de temas institucionais amplos, sem relação direta com o caso Daniel Vorcaro. É o tipo de resposta tecnicamente correta, formalmente impecável e politicamente insuficiente, pois não enfrenta o ponto central: o contexto, a oportunidade e a assimetria simbólica de um magistrado que concentra poderes investigatórios e decisórios se reunir, fora dos autos, em meio a um caso sensível. A carta cumpre o rito, mas deixa intacto o desconforto, reforçando a sensação de que, mais uma vez, a explicação se ocupa do acessório enquanto o essencial permanece fora do enquadramento.
Convém dizer. Uma democracia não se sustenta com instituições fracas. O Brasil sabe bem o preço disso. Mas também não prospera quando uma instituição, ainda que legitimada pela Constituição, passa a ocupar espaços que deveriam ser compartilhados ou tensionados. A lógica republicana não é a da supremacia moral ou técnica de um Poder sobre os demais, e sim a da desconfiança mútua organizada. É esse atrito que preserva o sistema.
O que se observa hoje é uma espécie de anestesia coletiva. Decisões excepcionais se tornam rotina. Medidas emergenciais se perpetuam. Interpretações elásticas viram jurisprudência. A sociedade, cansada ou resignada, passa a aceitar o extraordinário como normal. O debate público se empobrece, quem questiona é acusado de atacar a democracia; quem pede limites é rotulado como inimigo das instituições. O espaço para a crítica legítima vai sendo estreitado.
Talvez o ponto central não seja o tamanho do poder acumulado, mas a rarefação do constrangimento. O constrangimento republicano é um freio invisível, mas essencial. Ele não impede decisões difíceis, apenas exige que sejam tomadas com parcimônia e consciência de suas consequências institucionais. Sem ele, o poder perde o senso de proporção e passa a confundir legalidade com legitimidade.
No fim, o risco maior não é um Supremo atuante, nem um Judiciário protagonista. O risco real é um país que deixa de se perguntar onde estão os limites, ou que aceita a ideia de que eles não são mais necessários. Democracias não colapsam apenas por rupturas abruptas. Muitas vezes, elas se desgastam lentamente, por excesso de certezas e falta de dúvidas.
A ceia está posta. Os pratos são bem apresentados, o discurso é refinado, a técnica é impecável. Ainda assim, algo não cai bem. E quando uma democracia começa a perder o apetite por limites, o problema não está no cardápio, está na digestão institucional que se recusa a reconhecer que nem tudo o que é possível é, necessariamente, desejável.
Porque, ao fim e ao cabo, a República não morre de um golpe. Morre de indigestão.
