Um levantamento divulgado pelo Instituto Millenium, baseado em análise da ONG, República.org e do Movimento Pessoas à Frente, escancara aquilo que muita gente suspeitava, mas poucos tinham coragem de quantificar. Cinquenta e três (53) mil servidores públicos recebem acima do teto constitucional, hoje fixado em aproximadamente R$46 mil, o subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Num país com 12,7 milhões de servidores públicos, segundo estimativas recentes do IBGE, isso significa que um universo inteiro de privilégios é sustentado por um grupo numericamente pequeno, mas financeiramente devastador. Apenas 0,4% do funcionalismo consome bilhões, mas é justamente essa elite burocrática que rasga a credibilidade do Estado e sabota qualquer possibilidade de ajuste fiscal sério.
Esses 53 mil supersalários custaram R$20 bilhões aos cofres públicos em apenas doze meses. Não são falhas isoladas, exceções administrativas ou erros contábeis: trata-se de uma estrutura montada para driblar a lei, empurrada por gratificações sem limite, auxílios cumulativos, retroativos generosos e uma criatividade que faria inveja ao mais ambicioso roteirista de ficção.
O nome disso? Penduricalho. A indústria nacional dos benefícios quase clandestinos, que ninguém ousa cortar e que segue alimentada pelo silêncio cúmplice das cúpulas dos Três Poderes.
Onde mora o privilégio? O levantamento expõe sem rodeios a hierarquia da distorção: A Magistratura, o poder Judiciário lidera com cerca de 21 mil casos acima do teto. Seguido pela estrutura do Executivo Federal, (ministérios, autarquias, estatais e empresas mistas), com aproximadamente 12 mil.
E o Ministério Público que abriga cerca de 10 mil desses privilegiados.
É irônico, para não dizer trágico, que justamente quem deveria proteger a Constituição seja quem mais a contorna. Enquanto o país discute ajustes, cortes, sacrifícios, responsabilidade fiscal e políticas de austeridade, o topo da máquina pública vive numa bolha, blindado por interpretações convenientes e por um sistema que parece ter como missão perpetuar desigualdades internas.
Comparado ao mundo, o cenário é ainda mais vergonhoso. Segundo dados divulgados pelo Millennium, o Brasil é o campeão mundial dessa modalidade com 53.488 servidores acima do teto, em seguida aparecem a Argentina com 27 mil. Se olharmos a realidade mundo afora veremos os EUA com 4.081; o Reino Unido com 1.986.a França com 77; a Itália com 46; e a Alemanha com 0; Sim: zero.
Enquanto a Alemanha constrói eficiência, o Brasil constrói exceções.
Um Estado pesado para muitos e leve para poucos
Quando se coloca essa distorção ao lado do dado bruto, 12,7 milhões de trabalhadores no setor público, a conclusão é óbvia: o problema do Estado brasileiro nunca foi tamanho, mas forma. Nunca foi quantidade, mas qualidade.
Ter muitos servidores não é necessariamente um erro, países desenvolvidos têm proporcionalmente mais trabalhadores públicos que o Brasil. O erro está em como a máquina se organiza, em quem recebe quanto, pelo quê, e sob quais regras.
O Brasil opera uma lógica perversa, a base trabalha e a elite dos servidores públicos é indenizada. A base segue limites; a elite coleciona exceções. A base sustenta o Estado; a elite sustenta seus próprios privilégios. É impossível falar em responsabilidade fiscal enquanto benefícios retroativos são distribuídos com naturalidade e enquanto o teto constitucional, o marco máximo da razoabilidade remuneratória, é tratado como sugestão decorativa.
O rombo financeiro de R$20 bilhões é enorme, mas o rombo moral é maior.
Ele destrói a confiança da população na administração pública, alimenta o cinismo político e corrói o respeito pelas instituições. Como pedir sacrifício ao cidadão comum, que enfrenta hospital sem médico, escola sem professor e transporte público sucateado, quando há servidores recebendo até 200 mil reais líquidos por mês?
Como justificar aumento de impostos, corte de investimentos e adiamento de obras quando esse tipo de indignidade é mantido com naturalidade?
Reforma administrativa, uma pauta proibida
A pesquisa evidencia o óbvio ululante: o Brasil precisa urgentemente de uma reforma administrativa, não para cortar salário de professor ou de policial, mas para atacar o coração da distorção, o topo privilegiado e blindado do serviço público.
Uma reforma que revise os penduricalhos, acabe com retroativos fantasiosos, imponha respeito ao teto, e estabeleça uma remuneração coerente com o papel e a responsabilidade de cada carreira. Além de adotar, a tão criticada pelos progressistas de plantão, meritocracia.
Mas poucos querem mexer nisso. Por quê?
Porque mexe com quem manda, com quem julga, com quem acusa, com quem governa, com quem controla a própria reforma que deveria limitá-lo.
O Brasil real, aquele que paga imposto, que sustenta o Estado, que enfrenta fila, que vive de salário congelado, está cansado de financiar um aparelho público que se alimenta de exceções e sobrevive de privilégios.
Se quisermos reconstruir a credibilidade das instituições, começar pelos supersalários não é apenas lógico, é obrigatório. Porque o teto constitucional não é ornamento. É limite. E limite existe para ser respeitado.
E, enquanto for violado por quem deveria defendê-lo, o Estado brasileiro continuará pesado onde não deve e leve e ineficiente onde mais pesa, no bolso do contribuinte.
