O julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal é mais do que um processo jurídico: virou palco de um embate institucional, político e simbólico. Os fatos que cercam o caso, tentativas de subversão da ordem democrática, são gravíssimos. Mas a maneira como o tribunal conduz a questão abre espaço para críticas legítimas e narrativas inflamadas.
Primeiro ponto: a competência. Até pouco tempo, ex-presidentes respondiam em primeira instância. O entendimento mudou com o bonde já andando. Essa guinada alimenta a sensação de insegurança jurídica. A lei não deveria ser um jogo de cadeiras musicais, em que a regra muda conforme o personagem.
Depois, a figura de Alexandre de Moraes. Ministro relator, que concentrou poderes: autorizou buscas, determinou cautelares, quebrou sigilos e agora julga. Especialistas lembram que, em democracias maduras, quem investiga não é o mesmo que sentencia. É o velho risco de o juiz virar parte interessada.
Outro aspecto é o julgamento pela Primeira Turma, com apenas cinco ministros. Num caso que toca a integridade da República, o natural seria levar ao plenário, com os onze togados. O atalho processual dá munição para a narrativa de “julgamento restrito”.
Não faltam ainda denúncias de cerceamento da defesa: advogados impedidos de acompanhar audiências, celulares de defensores apreendidos. Ora, se até o direito de defesa é tolhido, o STF passa a impressão de tribunal inquisitorial, não de corte constitucional.
A delação de Mauro Cid também é polêmica. Sua palavra é peça-chave, mas a forma como foi homologada suscita dúvidas. Quando a principal prova vem de um personagem que virou símbolo de traição, a linha entre justiça e novela se estreita perigosamente.
Por fim, a prisão domiciliar de Bolsonaro. Oficialmente, teria descumprido cautelares, mas a ligação direta com posts de aliados não está clara. A medida soa mais política do que jurídica, e a Constituição não foi feita para sustentar prisões preventivas baseadas em clima.
O resultado é paradoxal: o STF julga com provas fortes de que houve sim um plano golpista, mas com vícios processuais que dão ao réu munição para se apresentar como vítima. Bolsonaro pode sair condenado, mas fortalecido. Mártir ou sobrevivente, ele sempre encontra na controvérsia combustível para sua narrativa.
Já o STF corre o risco de perder algo maior que um julgamento. A confiança pública. Se a Corte que deveria ser o último refúgio da Constituição é vista como parte interessada, a democracia sai mais frágil. Entre a toga e a política, o Supremo insiste em dançar em terreno movediço.
Como lembrou meu colega de 98 Talks, Gustavo Figueiroa, citando seu professor de filosofia do Direito, Luis Carlos Balbino Gambogi, que em seu livro afirma: “a arte de interpretar leis exige mais que ciência e técnica, porque pela moldura jurídica não se passam bois, passam homens, com suas vidas, com suas finitudes, com suas circunstâncias”