A discussão em torno do Projeto de Lei 262/2025, de autoria do vereador Irlan Melo (Republicanos), recoloca no centro da pauta política de Belo Horizonte um dilema que atravessa o Brasil: como equilibrar o direito à propriedade com o direito à moradia. A proposta prevê multa de R$ 10 mil a quem invadir propriedades públicas ou privadas na capital, valor que dobra em caso de reincidência, e a proibição, por oito anos, de participar em concursos ou assumir cargos públicos municipais.
Na Comissão de Direitos Humanos, Habitação, Igualdade Racial e Defesa do Consumidor, o texto recebeu parecer pela rejeição, sob a alegação de que poderia criminalizar movimentos sociais ligados à luta pela reforma urbana. Ainda assim, segue em tramitação e poderá ser levado ao Plenário caso seja aprovado nas demais comissões.
O argumento da ordem e da segurança
Não há como negar, invasões ilegais trazem consequências sérias. Elas geram insegurança jurídica, afastam investimentos, travam projetos públicos e criam conflitos que acabam nos tribunais. Além disso, desorganizam o planejamento urbano e, em muitos casos, colocam famílias em risco em áreas impróprias para moradia.
Nesse ponto, o PL 262/2025 tem mérito. Ele sinaliza que o poder público não pode ser conivente com práticas que desrespeitam a lei e que enfraquecem o princípio da propriedade, base de qualquer sociedade organizada. A ausência de punição clara abre brecha para o crescimento de ocupações oportunistas, lideradas muitas vezes por grupos que se aproveitam do vácuo do Estado.
O contraponto da função social da propriedade
Mas a propriedade não é um valor absoluto. A própria Constituição estabelece que ela deve cumprir uma função social. Imóveis abandonados, terrenos sem uso e áreas que poderiam estar destinadas à habitação ou equipamentos públicos não podem se transformar em monumentos à especulação enquanto milhares de famílias vivem em condições precárias.
É justamente nesse ponto que surgem os questionamentos ao projeto. O vereador Pedro Roussef (PT), relator da comissão que rejeitou a proposta, lembrou que as ocupações têm sido historicamente um instrumento de reivindicação do direito à moradia. A Secretaria Municipal de Assistência Social também alertou que a medida, se aprovada, pode comprometer a atuação de organizações da sociedade civil que trabalham em projetos habitacionais.
O risco é tratar como crime indiscriminado qualquer forma de ocupação, inclusive aquelas que dão visibilidade ao déficit habitacional e pressionam o poder público a agir.
A questão central não é escolher entre defender a propriedade ou a moradia, mas construir um modelo de cidade que contemple os dois direitos. A aplicação de multas e sanções pode ser útil para coibir invasões motivadas por interesses políticos ou econômicos, mas precisa vir acompanhada de políticas habitacionais efetivas. Sem alternativas concretas de moradia, a lei corre o risco de ser apenas mais uma peça punitiva, incapaz de resolver o problema de fundo.
O equilíbrio exige que o Legislativo municipal encontre uma fórmula que garanta a proteção da propriedade contra abusos, sem sufocar movimentos legítimos que denunciam a desigualdade social. Significa punir quem age de má-fé, mas também acelerar programas de habitação popular, urbanização de áreas degradadas e aproveitamento de imóveis ociosos.
O PL 262/2025 nasce com a intenção de colocar ordem na casa, mas, isoladamente, não é suficiente. Belo Horizonte precisa de uma lei que reconheça o valor da propriedade e, ao mesmo tempo, respeite a luta por moradia digna. Proibir invasões sem oferecer soluções habitacionais é enxugar gelo. Liberar ocupações sem limites é mergulhar na desordem.
O desafio está em não transformar direitos constitucionais em trincheiras opostas. A cidade precisa de pontes, não de muros: leis que protejam, mas também políticas que incluam. Só assim Belo Horizonte poderá enfrentar de frente, e de forma equilibrada, o conflito histórico entre o solo urbano, o teto e a vida digna.