A maior favela de Minas Gerais volta a se transformar em tela para uma das mais significativas intervenções de arte urbana do país. A quarta edição do Morro Arte Mural (MAMU) já começou a tomar forma no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, com a proposta de celebrar as águas que atravessam e sustentam o território. Desta vez, o projeto mergulha em um tema profundamente conectado à história, à cultura e à ecologia local: os mananciais da Serra, correntes de vida que guardam memórias de um tempo em que a água ainda não chegava pelas torneiras.
O projeto tem início oficial de pintura previsto para 18 de agosto, seguindo até 14 de setembro. Antes disso, andaimes já começaram a ser erguidos pelas vielas e ladeiras da comunidade. O mural será instalado com vista privilegiada para a Praça do Cardoso, tornando-se uma homenagem visível sobretudo para os próprios moradores — uma mudança simbólica em relação às edições anteriores, que priorizavam a visibilidade a partir de avenidas movimentadas da capital.
Inspirado pelo tema “Águas da Serra”, o novo mural resgata histórias locais sobre as nascentes que cortam o Aglomerado, como os córregos Acaba Mundo, da Serra e do Cardoso. “Essas águas não são apenas fontes de abastecimento. Elas carregam histórias, rituais, rotinas e afetos”, explica Juliana Flores, diretora artística do projeto. Ela destaca que muitas das memórias colhidas nas escutas com a comunidade revelam usos específicos de cada nascente, como lavar roupa, tomar banho ou cozinhar, antes da chegada da água encanada.
Dona Maria Conceição da Costa, moradora e filha de uma das principais lideranças do Aglomerado, lembra bem dos tempos em que o acesso à água exigia esforço coletivo. “Antigamente, a gente subia com as latas na cabeça. Cada água tinha um propósito”, conta. Essa dimensão afetiva e simbólica será traduzida em cores e formas nas fachadas de dezenas de casas, compondo um macro mural que honra os fluxos visíveis e invisíveis do território.
Ao todo, o projeto vai pintar fachadas de 34 casas. O trabalho será assinado pelo artista plástico Jorge dos Anjos.
Além de sua potência visual, o MAMU reforça o protagonismo da própria comunidade, que participa ativamente desde a concepção até a finalização das obras. Mais de 50% da equipe é formada por moradores do Aglomerado da Serra, e todo o processo é marcado por rodas de conversa, oficinas e encontros intergeracionais. “Vamos promover um grande encontro entre gerações. A arte é do Jorge dos Anjos, mas quem sobe pra pintar são os artistas locais. O presente é para o Serrão”, afirma Fatini Forbeck, diretora criativa do projeto.
Criado para valorizar a arte urbana como instrumento de transformação social, o MAMU já passou por outros territórios periféricos de Belo Horizonte, como o Alto Vera Cruz, a Vila Nova Cachoeirinha e o Morro do Papagaio. Em cada local, os murais são criados em diálogo com a comunidade e com a paisagem. Agora, ao se debruçar sobre a importância das águas no Aglomerado da Serra, o projeto não apenas colore fachadas — mas reativa a memória e convoca um olhar mais atento para os bens naturais que sustentam a cidade.