Belo Horizonte e o imposto do tempo 

Siga no

(Dirceu Aurélio/Agência Minas)

Compartilhar matéria

Dois em cada três trabalhadores brasileiros levam até meia hora para chegar ao trabalho, segundo o Censo 2022 do IBGE. O número, à primeira vista, parece civilizado, afinal, meia hora soa como um intervalo administrável entre o café e o expediente. Mas a realidade por trás da média nacional tem sotaque mineiro e cheiro de escapamento, Em  Belo Horizonte, esse tempo é quase uma ficção urbana. A cidade, que cresceu desordenada e se moderniza em ritmo de tartaruga asmática, transformou o deslocamento cotidiano num ritual de paciência.

A ilusão da “meia hora”

Os dados do IBGE mostram que 67% dos brasileiros gastam até 30 minutos no trajeto casa–trabalho. Outros 20% levam entre meia e uma hora, e 10% enfrentam de uma a duas horas de deslocamento. Um milhão e trezentas mil pessoas passam mais de duas horas por dia no trânsito, o que equivale a 22 dias inteiros por ano apenas indo e voltando do trabalho.

CONTINUA APÓS A PUBLICIDADE

Em Belo Horizonte, onde o sistema viário foi pensado para uma cidade de 500 mil habitantes e não para uma metrópole de quase três milhões, essa “meia hora média” é uma miragem estatística. Entre o Barreiro e o Hipercentro, por exemplo, o trajeto que poderia levar 25 minutos sem congestionamento frequentemente consome 1h15 nos horários de pico, isso em uma perspectiva otimista. Em Venda Nova, o drama é ainda mais evidente: linhas de ônibus superlotadas, vias estreitas, semáforos sem sincronismo, e obras que se arrastam por anos transformam o cotidiano em teste de resistência.

O belo-horizontino vive hoje uma contradição. É cobrado como se morasse em uma capital europeia, mas se locomove como em uma cidade latino-americana dos anos 80. A promessa de mobilidade plena, que sobrevive ao entra e sai dos prefeitos, nunca saiu do papel. O metrô, com apenas uma linha que corta um pedaço da cidade, continua sendo uma piada pronta. O BRT, que deveria ser solução rápida, virou uma sopa de siglas que ninguém mais respeita. Faixas invadidas, estações degradadas, ônibus quebrados e horários imprevisíveis.

E enquanto isso, os projetos que poderiam mudar o jogo, como a Linha 2 do metrô, a expansão até o Barreiro e o tão falado Rodoanel, seguem, mesmo que em execução a passos lentos e à mercê de decisões judiciais. Belo Horizonte continua refém de um modelo de mobilidade rodoviário, caro e ineficiente, que ignora a necessidade de integração com transporte sobre trilhos, e incentivos reais ao transporte coletivo.

CONTINUA APÓS A PUBLICIDADE

O tempo gasto no trânsito é mais do que incômodo, é uma moeda invisível que a cidade cobra de quem trabalha. Um morador da região Norte que gasta mais de duas horas por dia entre casa e trabalho perde, ao fim do ano, o equivalente a quase um mês de vida produtiva. E isso não entra em planilhas nem em discursos oficiais.

BH se acostumou a naturalizar o atraso. Atraso do ônibus, atraso da obra, atraso da promessa. E, enquanto a cidade se move devagar, o custo humano e econômico se acumula. Um estudo da Confederação Nacional do Transporte já mostrou que os congestionamentos urbanos podem representar perdas de até 1% do PIB. Se aplicarmos essa lógica à economia de Belo Horizonte, falamos de bilhões de reais escoando pelo ralo, ou melhor, pelo asfalto rachado.

Há uma persistente miopia na gestão urbana: prefeitos preferem cortar fitas de viadutos e avenidas do que investir em transporte público de qualidade. É mais visível, mais eleitoreiro e rende fotos melhores. Mas é também o que eterniza o problema.

Enquanto cidades como Curitiba e Fortaleza investem em integração tarifária, corredores exclusivos e bilhetagem eletrônica eficiente, BH ainda discute se vai ou não reajustar o preço da passagem ou implantar “semáforos inteligentes”. Falta ousadia, planejamento e, sobretudo, visão de longo prazo.

CONTINUA APÓS A PUBLICIDADE

A mobilidade não é só transporte, é direito à cidade. E Belo Horizonte tem negado esse direito de forma silenciosa, cobrando um imposto cruel: o tempo. O tempo que o trabalhador perde para chegar ao emprego, o tempo que o estudante gasta no ônibus, o tempo que as famílias deixam de conviver.

Belo Horizonte precisa parar de maquiar o problema e encará-lo de frente. Não adianta instalar câmeras e aplicativos se a infraestrutura é obsoleta. Não adianta falar em cidade inteligente se o cidadão passa duas horas para cruzá-la. É preciso um plano metropolitano de mobilidade que una municípios, reordene fluxos e traga para a mesa Estado, iniciativa privada e sociedade civil.

Enquanto isso não acontece, seguimos reféns do cronômetro. O relógio da cidade continua girando, e Belo Horizonte, cansada e engarrafada, paga caro por cada minuto perdido entre o sinal vermelho e a próxima promessa.

CONTINUA APÓS A PUBLICIDADE

Compartilhar matéria

Siga no

Paulo Leite

Sociólogo e jornalista. Colunista dos programas Central 98 e 98 Talks. Apresentador do programa Café com Leite.

Webstories

Mais de Entretenimento

Mais de Colunistas

Infância conectada

Você sabe quanto custa o seu mês?

Você precisa de mais roupas ou de mais clareza sobre seu estilo?

A força invisível das marcas vem de dentro

Bicicleta dobrável: mobilidade sem complicação

Inadimplência recorde desafia otimismo dos dados oficiais

Últimas notícias

Incêndio faz moradores saírem de casa às pressas no bairro Nova Suíça, em BH

Polícia encontra fábrica que adulterava bebidas em SP e está ligada a mortes por metanol

‘Águas do Saber’: Estudantes escrevem livros sobre Brumadinho e encantam com criatividade e imaginação

Médico e equipe de enfermagem são denunciados por homicídio após omissão de socorro em UPA

Governo estuda elevar IOF após derrota no Congresso

A tecnologia não substitui o humano, amplia o humano

Brasil mostra evolução sob comando de Ancelotti e goleia Coreia do Sul

Caso Deloitte expõe riscos do uso sem supervisão da inteligência artificial

Farpas entre Haddad e Tarcísio após queda da MP 1303