A Câmara dos Deputados decidiu transformar a quarta-feira (27/8) em palco de um espetáculo que diz muito sobre o espírito do Congresso brasileiro. Duas propostas de emenda à Constituição entraram em cena: uma para blindar os parlamentares de decisões judiciais, outra para acabar com o foro privilegiado. Um paradoxo com cheiro de conveniência política: a mão direita promete aproximar os deputados do cidadão comum, a mão esquerda lhes oferece um colete à prova de juízes.
O retrocesso
A chamada “PEC da Blindagem” é, no fundo, um salvo-conduto para parlamentares. Ela busca limitar prisões apenas a casos flagrantes de crimes inafiançáveis, trava decisões judiciais que afastem deputados e senadores do mandato e, de quebra, expande o escudo da imunidade parlamentar. Em outras palavras: transforma o mandato em fortaleza, onde nem tornozeleira eletrônica entra sem aval do STF pleno.
Analiticamente, trata-se de um movimento claro de autopreservação. A narrativa é a defesa da democracia; a realidade é a criação de uma casta política com ainda mais instrumentos para escapar do alcance da Justiça.
Uma meia revolução
Em contrapartida, a “PEC do Fim do Foro Privilegiado” soa como um gesto de concessão ao clamor popular. Acabar com o foro especial para parlamentares, remetendo processos à primeira instância, seria um avanço num país onde o privilégio jurídico serviu por décadas como tapete para varrer processos incômodos.
Mas é preciso notar o detalhe: presidentes da República, do Congresso e do STF permaneceriam com a prerrogativa. Ou seja, a cúpula segue preservada. Mais que revolução, parece um ajuste de vitrine: tira o privilégio de muitos, mas mantém a redoma de poucos.
O ressurgimento dessas PECs não nasceu da súbita iluminação moral do Parlamento, mas de um motim na Mesa Diretora, encabeçado pela oposição. Para conter a crise, Hugo Motta (Republicanos-PB) pôs as duas propostas na pauta como moeda de pacificação. A manobra expõe o que de fato rege o processo legislativo: não princípios, mas arranjos.
O Centrão finge equilíbrio: aplaude o fim do foro, mas cochicha apoio à blindagem. A oposição tenta faturar resistência a uma, mas não tem coragem de peitar a outra. No fim, a democracia vira palco de coreografias ensaiadas — sempre para proteger os atores principais.
Se aprovadas, as PECs não representarão um avanço combinado de justiça e igualdade, mas um remendo contraditório. Blindar parlamentares contra a Justiça é um passo atrás de proporções graves. Acabar com o foro, embora simbólico, perde força quando não atinge os postos mais altos do poder.
O que vemos é menos uma reforma de costumes e mais uma operação de imagem: oferecer um “prêmio moral” à opinião pública enquanto se negocia nos bastidores a perpetuação de privilégios.
Em última instância, é a velha política brasileira em sua versão mais refinada: proclamar igualdade, mas escrever exceções em letra miúda.