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O STF e a morte silenciosa da responsabilização

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Gilmar Mendes (Foto: Agência Brasil)

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O Supremo Tribunal Federal acaba de dar mais um passo firme, e profundamente preocupante, rumo a um poder cada vez mais blindado, isolado e imune ao escrutínio democrático. A decisão do ministro Gilmar Mendes, que determinou que apenas o Procurador-Geral da República pode denunciar ministros da Corte por crimes de responsabilidade, é mais do que uma interpretação jurídica: é um gesto político, e grave, muito grave.

Na prática, Gilmar Mendes extingue o que restava de participação democrática no processo de responsabilização dos ministros do Supremo. Cidadãos não podem mais denunciar. Deputados não podem. Senadores não podem. Restou apenas o PGR, uma figura que, por natureza e história, sempre foi politicamente sensível, muitas vezes alinhada, e quase nunca disposta a comprar briga com quem tem poder para moldar os rumos do país.

É como se o STF tivesse dito à sociedade: “Nós nos julgamos. Nós nos investigamos. Nós decidimos se fizemos algo errado.”

E isso, convenhamos, não é República. É autodefesa corporativa.

Medo da pressão ou medo do controle?

O ministro afirma que permitir denúncias de qualquer cidadão criaria “intimidação” ao Judiciário, transformando o impeachment em ferramenta abusiva. Mas o que se vê é o contrário: não é o Judiciário que está sendo intimidado; é a sociedade que está sendo calada. Gilmar argumenta que juízes poderiam se ver pressionados por interesses políticos momentâneos. A questão é que com essa decisão, agora eles não se veem pressionados por nada. Nem pela sociedade, nem pelo Parlamento, nem pelo escrutínio público.

Estão livres, livres até demais, de qualquer mecanismo real de responsabilização.
Um poder acima de todos, julgado apenas por si mesmo. É a versão institucional da frase: “Eu fiz, eu decido se estava certo.”

A decisão suspende o trecho da Lei do Impeachment que dizia claramente que qualquer cidadão pode denunciar ministros do STF e o Procurador Geral da República por crimes de responsabilidade. Era simples, transparente e republicano. Se um ministro abusasse da função, qualquer brasileiro poderia provocar o Senado. Agora, essa porta foi trancada. E a chave foi entregue ao PGR, o mesmo que, historicamente, só age quando a política permite.

Além disso, a decisão vai além do razoável, ela eleva o quórum do Senado para dois terços, dificultando ainda mais qualquer possibilidade de responsabilização. e declara que decisões judiciais discordantes não podem ser usadas como argumento contra ministros, mesmo em casos de erro deliberado, abuso interpretativo ou atuação político-partidária camuflada.

É a blindagem perfeita: não podem ser denunciados; se forem, dificilmente o processo será aberto; se for aberto, dificilmente se sustentará. O STF virou o único poder que, na prática, não responde por seus próprios excessos.

O risco institucional: quando o juiz vira poder absoluto

A Constituição determina que o Senado deve julgar ministros do STF por crimes de responsabilidade. Isso não é capricho; é o mecanismo que impede que o Judiciário se transforme num poder hegemônico. Mas Gilmar Mendes, ao reescrever unilateralmente as regras do jogo, esvazia essa previsão constitucional. Se apenas o PGR pode denunciar, e se o mérito das decisões não pode ser analisado, fica estabelecido o seguinte cenário: Um ministro pode errar gravemente — e nada acontecerá. Um ministro pode atuar politicamente — e nada acontecerá. Um ministro pode usar o cargo para proteger aliados, perseguir adversários ou agir com viés ideológico — e nada acontecerá.

Porque, agora, o único que pode provocar o processo é justamente quem menos tem incentivo para fazê-lo. E o pior: essa blindagem é vendida como defesa da “independência judicial”. Mas independência não é sinônimo de impunidade. Independência não é ausência de controle. Independência não é carta branca para agir sem freios. Quando um poder não presta contas, ele deixa de ser equilibrado e passa a ser absoluto. E não existe democracia funcional com poderes absolutos.

O argumento de Gilmar é sedutor, porque apela à estabilidade institucional: evitar abusos, impedir perseguições, frear a politização do Judiciário. Mas a solução proposta é pior que o problema. Sim, o impeachment de ministros não pode virar festa. Sim, não pode ser arma de revanche política. Sim, não pode ser usado para pressionar decisões.

Mas nada disso justifica impedir toda a sociedade, e até o próprio Parlamento, de acionar o mecanismo quando houver abuso real. O que Gilmar Mendes fez foi transformar uma ferramenta excepcional em praticamente uma peça decorativa. E quando uma instituição cria barreiras demais contra seu próprio controle, é porque a instituição tem medo, não da perseguição, mas da crítica.

O Brasil precisa de um Judiciário independente, sim. Mas também precisa de um Judiciário responsável, franqueado ao controle republicano, e submetido às regras da Constituição, não acima delas.

Com essa decisão, o Supremo amplia sua distância do país real. Fica mais protegido. Fica mais intocável. Fica mais distante do cidadão, e mais próximo do risco de se transformar num poder monárquico, não num poder republicano.

O equilíbrio entre os poderes é uma corda esticada. Quando um deles sobe demais, a República afunda. E hoje, mais uma vez, afundou.

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Paulo Leite

Sociólogo e jornalista. Colunista dos programas Central 98 e 98 Talks. Apresentador do programa Café com Leite.

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