Há momentos na vida institucional do país em que o verniz se desprende de vez e revela aquilo que sempre esteve por baixo: um sistema político armado, não para servir ao eleitor, mas para se proteger do eleitor.
A mais recente demonstração desse mecanismo ocorreu na Câmara dos Deputados, que decidiu por ação ou omissão, dá no mesmo, não cassar ninguém. Nem Glauber Braga, nem Carla Zambelli, e também não irão cassar Alexandre Ramagem, e Eduardo Bolsonaro. Não irão cassar ninguém.
A lista não importa. O partido não importa. A ideologia não importa. O que importa é o padrão, e ele é inequívoco: o corporativismo parlamentar continua sendo uma das maiores forças políticas do Brasil, mais resistente do que a oposição, mais disciplinado do que a base aliada, mais forte do que qualquer discurso sobre ética ou responsabilidade.
A confraria invisível
Quando um deputado julga outro deputado, não estamos diante de um tribunal, mas de uma fraternidade. Uma confraria silenciosa e transversal, que une esquerda, direita e centrão naquilo que, paradoxalmente, mais os aproxima. O medo de estabelecer precedentes que possam, amanhã, engolir a todos.
No microfone, trocam acusações. Nas redes, inflamam militâncias. Mas, na hora da verdade, comportam-se como sócios de um clube fechado, onde o estatuto não escrito determina. “Não cassaremos o seu. E, quando chegar a nossa vez, você também não cassará o nosso.”
Não é pactuação republicana. É sobrevivência política disfarçada de prudência institucional. A democracia, porém, não vive de confrarias, vive da observância das regras, de responsabilidades e de consequências. Quando o Legislativo abdica de punir condutas graves, ele transmite à sociedade uma mensagem devastadora: dentro da Casa do Povo, a lei é opcional.
A Câmara agiu, novamente, como uma espécie de condomínio fechado. Cada deputado cuida da própria porta, mas todos se unem quando o síndico ameaça multar alguém. É o reacionarismo corporativo, que não é de esquerda nem de direita, mas de autopreservação. O discurso é sempre o mesmo: “É preciso cautela.” “O voto do parlamentar é soberano.” “Não podemos politizar a punição.”
Curioso: todas essas frases, de repente, desaparecem quando o alvo é o STF, o Executivo, governadores ou prefeitos. Lá, a crítica é livre. Aqui dentro, é território sagrado. E, assim, o brasileiro aprende outra lição amarga, no Legislativo, a régua ética muda conforme o crachá.
O cidadão que comete um deslize paga multas, perde direitos, enfrenta a Justiça. O parlamentar que comete um deslize ganha discursos inflamados em sua defesa, negociações de bastidor e, no pior dos casos, um puxão de orelha regulamentar. Nada muda. Ninguém cai. A roda gira, mas gira para deixá-los sempre de pé.
A impunidade não é um detalhe técnico. É um veneno institucional. Quando a Câmara deixa de punir seus membros, ela manda um recado: “A lei não se aplica a todos.”
A farsa do antagonismo
É quase teatral observar adversários ferrenhos trocarem acusações em público e, horas depois, dividirem a mesma trincheira da autoproteção. Nas redes, são gladiadores. No plenário, são inimigos. Nas comissões, trocam ironias e espetáculos. Mas, quando o futuro de um dos seus está em jogo, é como se recebessem um chamado interno: “Protegerás teu semelhante, pois amanhã poderás ser tu.”
E assim a retórica se dissolve. O moralismo evapora. Os princípios viram moeda de troca. A fidelidade ideológica dá lugar à fidelidade corporativa.
Mas isso tem um custo para o País, o preço dessa prática é invisível, mas altíssimo. Mais descrença. Mais cinismo. Mais distância entre o povo e seus representantes. Cada dia fica mais clara para o cidadão a infeliz convicção de que no Congresso Nacional, na política brasileira, “todos são iguais”. Farinha do mesmo saco.
O Brasil precisa de instituições corajosas, de exemplos que eduquem, de decisões que reafirmem o óbvio. Cargos não podem blindar condutas. Mas, por enquanto, a Câmara prefere o caminho fácil: o da imobilidade moral. A cada decisão como essa, o Legislativo brasileiro confirma aquilo que muitos já sabem. Quando o assunto é proteger colegas, não existe esquerda e direita, existe casta.
O mais trágico é que essa casta não percebe que corrói, dia após dia, sua própria legitimidade. Não enxerga que cada não-cassação é mais um tijolo retirado do edifício democrático. Não entende que a impunidade institucionalizada afasta, frustra e desmobiliza a sociedade.
E nós ficamos aqui, do lado de fora, assistindo ao mesmo espetáculo repetido, ano após ano. Um Parlamento que se protege, mas não protege o país. Que grita para fora, mas sussurra para dentro. Que aponta o dedo para a sociedade, mas nunca para si mesmo.
E, enquanto as luzes desse teatro não se apagam, seguimos respirando o ar viciado de um sistema que escolheu a autopreservação como valor supremo. A democracia brasileira merece mais. O brasileiro também.
