Você trabalha a vida inteira, muda sua rotina, seus planos, pensando nas melhores possibilidades para um filho. Aqui em casa, por exemplo: quando eu e meu marido precisamos tomar uma decisão importante, sobre onde iremos morar nos próximos dez anos, fazemos a escolha pensando no que é melhor para os nossos filhos.
Será que a nova residência fica próxima a boas escolas? Será que o espaço é bom para eles brincarem? Será que o ar da cidade é respirável?
Quando pedi demissão do jornalismo, para advogar, foi assim também: o que é melhor para os meus filhos? Que a mãe deles se submeta a um horário do patrão ou que faça seu próprio horário, priorizando os compromissos dos filhos?
São escolhas… e, por mais que esperemos (até mesmo inconscientemente) que um dia os filhos cuidarão da gente como cuidamos deles, sabemos que nada é garantido.
Semana que vem completa um mês que a professora Soraya Tatiana Bonfim, 56 anos, foi assassinada pelo próprio filho, Matteos França Campos, de 32 anos. O caso foi em Belo Horizonte. No momento em que soube do caso da mãe que foi assassinada pelo próprio filho, vários questionamentos vieram em mente. O primeiro: como um ser que se diz humano tem coragem de matar alguém? O homicídio por si só já é uma barbárie. Agora o matricídio? Por pior que seja uma mãe, ela lhe deu a vida, que é o bem mais precioso que temos. E, até onde sei, Soraya era uma excelente mãe. Talvez seu maior pecado tenha sido este: ter sido boa demais.
Acabou enforcada até a morte, pelo próprio filho, que não aceitou que a mãe divergisse dele por causa dos famigerados e capetosos jogos de azar. Como se não bastasse, o algoz ainda simulou um crime nojentíssimo quando tira as roupas de baixo que a mãe vestia para tentar enganar a investigação. Para quem não se lembra, Soraya foi encontrada somente com blusa e coberta com um lençol que estava preso por pedras em volta do corpo. Desculpe Matteos, mas quem age por impulso, não tenta enganar a polícia depois. Não desova corpo e nem simula estupro seguido de morte.
Passadas as considerações sobre o quão chocante foi o crime, tomo a liberdade de usar o caso para explicar a vocês o que acontece com o herdeiro que comete crime contra aquela pessoa que deixa algum patrimônio a ser partilhado.
Você já ouviu falar da ação judicial de declaração de indignidade, um instrumento previsto no Código Civil brasileiro que permite excluir da sucessão o herdeiro que comete crime contra o autor da herança (a pessoa que deixa bens).
O que é herdeiro indigno?
A figura do herdeiro indigno está prevista no artigo 1.814 do Código Civil. De forma simples, trata-se daquele que, por ter atentado contra a vida, honra ou liberdade do falecido, perde o direito à herança.
É o caso do filho da professora Soraya que pode ser declarado indigno e, assim, impedido de participar da partilha de bens deixados pela mãe.
Quem pode pedir que o herdeiro seja declarado indigno?
Essa exclusão não é automática. É preciso que alguém entre na Justiça com uma ação de indignidade, no prazo de até quatro anos após a abertura da sucessão (ou seja, após o falecimento).
Mas quem pode mover essa ação?
- Outros herdeiros interessados — como tios, avós ou sobrinhos;
- O Ministério Público, em casos onde não há herdeiros diretos;
- O próprio município, caso seja o herdeiro legal na ausência de parentes.
Esse último ponto chama atenção: se a professora Soraya não tiver outros herdeiros além do filho, os bens podem ficar com o município onde ela residia, com base no artigo 1.844 do Código Civil.
Mas somente se Soraya não tiver deixado testamento. Porque a lei permite que alguém deixe 50% de seus bens para pessoas diferentes de familiares. Então, caso Soraya tenha deixado testamento, os beneficiados herdam os 50% de tudo que ela deixou e os outros 50% que seriam de Matteos, vão para os herdeiros necessários (pai, mãe outros filhos ou netos de Soraya), no caso de declarada a indignidade do filho assassino.
E se Soraya não tivesse pais ou irmãos?
Caso Soraya não tenha deixado pais (avós do acusado) ou irmãos (tios do acusado), e sendo o filho o único herdeiro necessário, a herança poderia ir para herdeiros colaterais até o quarto grau. Se também não existirem, o município pode requerer os bens para si por meio de ação judicial.
O papel (ainda controverso) do Ministério Público
Aqui entra outro ponto importante e ainda não pacificado: o Ministério Público pode entrar com essa ação de indignidade?
Há juristas que defendem que sim, argumentando que há interesse público na punição civil de quem comete crimes contra familiares — especialmente se o patrimônio está em risco ou se não há herdeiros.
Outros doutrinadores, porém, entendem que o MP não teria legitimidade ativa, já que a sucessão envolve, em regra, interesses exclusivamente privados.
Ou seja, ainda que o Ministério Público possa atuar em casos onde não existam outros legitimados, sua atuação pode ser questionada judicialmente.
Herdeiro indigno perde tudo?
Sim. Se for declarado indigno, o herdeiro perde todos os direitos sucessórios, inclusive quanto ao direito ao usufruto de bens, à administração do espólio e até à legítima, que seria sua parcela garantida por lei.
Além disso, o herdeiro indigno também não pode representar o falecido em outras sucessões — por exemplo, na herança dos avós da vítima.
A sociedade também pode agir
Casos como o da professora Soraya mostram que a violência familiar pode gerar consequências jurídicas de longo alcance — e que a Justiça pode ser acionada mesmo por quem não está diretamente envolvido.
Se você conhece uma situação semelhante, ou tem dúvidas sobre a validade de uma herança, é essencial buscar orientação com um advogado especializado em direito de família e sucessões.