Brasília, sempre talentosa para produzir roteiros ruins com subtextos deliciosos, nos brindou com um episódio que pode entrar facilmente para o acervo das grandes peças políticas: o embate entre o Planalto, o advogado-geral da União, Jorge Messias, e, no centro absoluto da cena, Davi Alcolumbre, presidente do Senado, que decidiu fazer algo quase exótico na política brasileira: lembrar que tem Poder.
O incômodo chamado Alcolumbre
Sim, Poder. Essa palavra esquecida no dicionário institucional do país, onde o Congresso tantas vezes se comporta como um cartório de luxo, pronto a carimbar qualquer vontade presidencial com a tinta ainda fresca de servidão. Só que, desta vez, não. Desta vez o carimbo secou antes do tempo. E o responsável por isso foi Alcolumbre.
A história começa com a decisão de Lula de indicar Jorge Messias ao Supremo Tribunal Federal. Um nome fiel, alinhado, orgânico ao governo. Nada surpreendente, presidentes, no Brasil, adoram moldar o STF com pessoas de sua cozinha. O problema, do ponto de vista institucional, é quando esse automatismo vira norma, e o Senado passa a ser apenas uma etapa burocrática. Mas Alcolumbre quebrou essa lógica ao dizer: “Não. Assim, não.”
E disse publicamente. Com ruído. Com incômodo. Com a firmeza de quem sabe que o Senado existe para algo maior do que servir café para o Executivo. Brasília achou indelicado. Eu diria, foi o sopro de República que há anos falta na Praça dos Três Poderes.
Porque quando o presidente do Senado, e por mais de uma vez presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Casa, confronta o presidente da República, ele não está encenando vaidade. Está exercendo o que a Constituição lhe delega e que a política frequentemente tenta empurrar para baixo do tapete. O Senado é o guardião das indicações ao Supremo.
Guardião não é figurante. Não é mordomo. Não é espectador de gala.
Não se trata de endeusar Alcolumbre, ele tem seus defeitos, seus interesses, sua agenda. Mas colocar o gesto dele na prateleira da birra pessoal é miopia analítica. É ignorar que, por trás da disputa, existe um debate maior, indicação ao STF não é herança política; é responsabilidade institucional.
E responsabilidade não se terceiriza.
O recado está dado, claro como o sol no Congresso: Lula parece agir como se bastasse anunciar o nome, sorrir para as câmeras, acenar para alguns caciques e deixar que o Senado “resolva”. Mas, desta vez, o Senado também resolveu, só que resolveu sozinho, no seu tempo, no seu tom.
Daí a perplexidade do Planalto. Daí os sussurros de que Alcolumbre “exagerou”, de que “expôs demais o processo”. Curioso, quando o Senado diz “sim” para tudo, ninguém fala em excesso. A exposição só incomoda quando vem acompanhada de um não.
Talvez porque seja raro demais ouvir um não. Mas o fato é que há algo mais profundo nessa cena. Alcolumbre não está apenas rejeitando um nome, está protegendo o Senado de virar braço auxiliar do Executivo. Está protegendo o STF de se tornar extensão política do Planalto. E está protegendo o país de um vício que se repete com teimosia, a aprovação automática de ministros como se estivéssemos numa monarquia com direito hereditário à toga.
E aí aparece o argumento fácil: “Ah, mas Alcolumbre também joga o seu jogo.” Claro que joga. Todos jogam. A diferença é simples: alguns jogam para controlar as peças; outros jogam para preservar o tabuleiro.nE esse é um ponto crucial. Porque democracia não é um ambiente sem atrito, é exatamente o contrário. É feita de fricção, de disputa, de discordância aberta.
O que mata a República não é o conflito; é a obediência silenciosa.
O Executivo existe para tensionar o Legislativo. O Legislativo existe para tensionar o Executivo. Quando um deles se encolhe, quando aceita calado, quando vira instrumento, o jogo político perde sua razão de ser. E o país perde junto. É por isso que Brasília tem horror a ruído, o ruído revela poder real. E, neste fim de ano, quem fez barulho foi Alcolumbre, e fez por boas razões. Ele devolveu ao Senado algo que há muito estava guardado numa gaveta empoeirada: a autoridade de dizer não.
E, quando um Poder diz não ao outro, a democracia respira. É como abrir uma janela num quarto abafado. Enquanto o Planalto tenta empurrar Messias como inevitável, Alcolumbre lembra que, no Brasil, nada pode ser inevitável. Nem indicações. Nem acordos tácitos. Nem o hábito de governar por hegemonia. E, no fim das contas, convenhamos: um Senado barulhento é infinitamente mais saudável do que um Senado calado.
Calado, submisso, obediente, decorativo, esse filme nós já vimos. E ele sempre termina mal. Desta vez, Alcolumbre lembrou ao país que o Senado não é carimbo. O Senado avalia, confronta, decide.
E isso, por mais incômodo que seja, é a substância mais dura e mais necessária da separação de poderes. Que bom que ainda exista, em Brasília, quem se lembre disso.
