BH e o retrato do desleixo nas calçadas da cidade

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(PBH/Divulgação)

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Há um consenso silencioso e incômodo que tomou conta das ruas de Belo Horizonte, o de que andar pela cidade virou um desafio. E não falo aqui do trânsito, das crateras no asfalto ou da falta de transporte público eficiente, embora tudo isso também pese no cotidiano. Falo do chão que pisamos. Das calçadas que deixaram de ser caminhos e se tornaram obstáculos, labirintos e, em muitos casos, moradias improvisadas.

Hoje, em bairros inteiros da capital mineira, calçadas estão ocupadas por verdadeiras casas montadas por pessoas em situação de rua. Estruturas improvisadas com sofás, colchões, fogareiros, lonas e todo tipo de tralha transformaram o espaço público em extensão de um lar que não deveria estar ali. E aqui não se trata de desumanidade nem de negação da tragédia social que empurra milhares para as ruas, trata-se de algo anterior, e igualmente fundamental. O direito coletivo de ir e vir.

Discursos não abrigam pessoas

A lógica é simples e civilizatória: se o espaço é público, ele deve ser livre, acessível, seguro. Deve servir à mobilidade, ao encontro, ao convívio. Deve acolher a diversidade, sim, mas jamais negar a função básica para a qual foi concebido. Quando as calçadas se tornam intransitáveis, quem perde não é apenas o pedestre apressado. Perdem as mães com carrinhos de bebê, os idosos que precisam de apoio, as crianças a caminho da escola. Perde a cidade como organismo vivo.

Transformar a rua em moradia é sinal gritante de uma política pública ausente, e de um poder público omisso. Não há plano, não há projeto, não há coordenação. A prefeitura de Belo Horizonte, que deveria ser protagonista na formulação de políticas habitacionais, sociais e de saúde voltadas à população de rua, se esconde atrás de discursos ideológicos e de uma retórica protetora que, na prática, nada protege.

Não basta erguer bandeiras em defesa dos vulneráveis, é preciso erguer políticas. Políticas reais, integradas e contínuas. Não há centros de acolhimento suficientes. Não há estratégias consistentes de reinserção social. Não há articulação com entidades civis, igrejas ou empresas para transformar vidas em vez de apenas tolerar a miséria.

E enquanto o poder público hesita em agir, o problema se agrava e se transforma. A ocupação irregular do espaço urbano deixou de ser apenas um tema de mobilidade ou estética urbana. Tornou-se também uma questão de segurança. Multiplicam-se os relatos de agressões a pedestres, em especial mulheres, crianças e idosos, por parte de pessoas em situação de rua, um fenômeno que exige atenção imediata, sem tabus nem romantizações.

É preciso coragem para dizer o óbvio

A cidade não pode ser refém do medo de agir. A autoridade municipal tem o dever constitucional de zelar pelo uso adequado dos espaços públicos e de garantir a segurança e a mobilidade da população. Isso não significa repressão cega nem violência, significa presença do Estado. Significa equipes multidisciplinares, com assistentes sociais, psicólogos, médicos e guardas municipais atuando de forma coordenada para retirar pessoas das calçadas e levá-las a locais adequados, onde possam receber acolhimento e tratamento digno.

Enquanto Belo Horizonte fingir que essa realidade não existe, ou tratá-la apenas como pauta para discursos inflamados em palanques e redes sociais, estaremos condenados a conviver com uma cidade cada vez mais intransitável, mais insegura e menos humana.

A rua é o espaço onde a cidade acontece. É o chão do encontro, do comércio, da convivência democrática. Quando o espaço público se desfigura, desfigura-se também a própria ideia de cidade. A omissão diante do problema dos moradores de rua não é só um fracasso da política social, é um fracasso da cidadania.

E a pergunta que não quer calar, diante de tanta paralisia e descuido, é simples e urgente. Quando Belo Horizonte terá coragem de devolver suas calçadas a quem precisa delas?

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Paulo Leite

Sociólogo e jornalista. Colunista dos programas Central 98 e 98 Talks. Apresentador do programa Café com Leite.

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