Há decisões que atravessam o noticiário como relâmpagos: rápidas, estrondosas e anunciadoras de tempestades. A aprovação, pela Câmara dos Deputados, do PL da Dosimetria é uma dessas faíscas que iluminam a escuridão, não para esclarecer, mas para mostrar o tamanho da tempestade política e institucional que estamos prestes a enfrentar.
Em uma votação marcada por tumulto, protestos e a interrupção da transmissão oficial, a Câmara aprovou o projeto que reduz as penas dos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Nada de anistia explícita, nada de perdão formal. O movimento é mais sutil, e, por isso mesmo, mais perigoso: uma recalibração das penas, uma revisão retroativa do que o Supremo Tribunal Federal já julgou e sentenciou.
O que o PL muda, e por que isso importa
O projeto estabelece novos critérios de dosimetria penal para crimes relacionados aos ataques à sede dos Três Poderes. Na prática, isso significa que juízes terão de reavaliar as sentenças dos condenados, aplicando parâmetros mais brandos do que os usados pelo STF.
E quando se fala em “reavaliar”, entenda-se: reduzir penas, em muitos casos de maneira drástica.
Dezenas de condenados, aqueles enquadrados como executores, incentivadores ou organizadores, poderão ver suas penas, hoje de 12, 14, 17 anos, caírem para algo entre 5 e 7 anos. E, com a matemática da progressão penal, vários desses condenados podem voltar rapidamente ao convívio social.
Se isso é justiça ou indulgência, cabe ao leitor julgar. Mas não há como negar que é uma mudança profunda na mensagem institucional enviada ao país.
O recado é claro: a pena que a Suprema Corte considerou proporcional pode não ser mais tão proporcional assim, pelo menos aos olhos de parte significativa do Congresso Nacional, eleitos para fazer as leis do País.
O impacto sobre Jair Bolsonaro
No epicentro do furacão está, inevitavelmente, Jair Messias Bolsonaro.
Condenado a 27 anos e 3 meses por incitação, participação intelectual e estímulo aos atos antidemocráticos, o ex-presidente é, como sempre, o personagem mais citado e mais discutido.
Com a nova dosimetria, estimativas realistas apontam para uma queda da pena para algo próximo de dois anos e quatro meses, uma mudança que transforma uma sentença duríssima em uma punição administrável. Algo entre o regime aberto e medidas alternativas.
É óbvio que isso tem repercussão política. Uma redução tão acentuada das penas abre espaço narrativo para a tese da “perseguição”, fortalece a militância bolsonarista e recoloca o ex-presidente no tabuleiro com mais força, inclusive na disputa simbólica pelo futuro.
A eventual diminuição de pena não anula a condenação, mas reduz seu peso. E, em política, peso é quase tudo.
Agora, depois de votado no Senado e aprovado, todos os olhos se voltam ao Supremo Tribunal Federal. E com razão. O STF está diante de uma encruzilhada que mistura Constituição, legitimidade institucional e sobrevivência simbólica.
Essa coluna ouviu alguns juristas e posso lhes dizer que três são os caminhos possíveis:
A rejeição da lei (duro confronto institucional)
O Supremo pode entender que o Legislativo interferiu indevidamente em sentenças já transitadas em julgado, violando a separação de poderes.
É juridicamente possível. Mas politicamente explosivo. Seria um enfrentamento frontal entre Poderes num momento de instabilidade.
A aceitação com salvaguardas — o cenário mais provável
O STF pode permitir que a lei vigore, mas estabelecer que cada revisão de pena seja analisada individualmente, sob controle judicial rigoroso.
Essa é a saída institucionalmente mais elegante.A Suprema Corte respeita o Legislativo, preserva o Judiciário, evita que a revisão vire um “salvamento automático” dos condenados, e garante que crimes contra a democracia continuem sendo levados a sério.
A aceitação integral — improvável e arriscada
A Corte poderia simplesmente não reagir. Mas isso significaria abrir mão de sua própria autoridade nos casos mais graves da história democrática recente. É um cenário tão improvável quanto perigoso.
Não há indicativo real de que o STF tenha “concordado” com o projeto, como afirmou o relator Paulinho da Força. O silêncio do Supremo não é complacência, é cálculo político.
A Corte sabe que não pode vestir a capa de vilã institucional, mas tampouco pode aceitar que crimes contra a democracia se tornem moeda legislativa.
Minha aposta é clara. O STF vai aceitar a existência da lei, mas vai reduzir drasticamente seus efeitos automáticos.
Será necessária a análise caso a caso. Com isso o STF manteria o controle, e deixaria claro que há limites legais para a análise de cada caso.
E, nesse caso, haverá, sim, uma mensagem institucional: o crime cometido em 8 de janeiro não será tratado como desvio administrativo corrigível no balcão legislativo.
O Brasil no espelho
O PL da Dosimetria joga luz sobre uma ferida aberta: a incapacidade de parte da classe política de lidar com a gravidade dos ataques ao Estado Democrático de Direito. Enquanto uns tentam reduzir a dor da cicatriz, outros insistem em lembrar que ela foi causada por um golpe, não por um mal-entendido. A história, dinâmica, ainda está escrevendo sua linha final.
O PL da Dosimetria não encerra essa disputa, apenas inaugura um novo capítulo, e, como todo enredo de crise institucional, promete ainda muitos parágrafos tensos, longos e decisivos.
