A crise mais recente entre o Executivo e o Senado não nasceu de um escândalo, de uma CPI barulhenta ou de um rompante de bastidores. Ela nasceu daquilo que, em Brasília, costuma doer mais do que qualquer denúncia, um recado silencioso, medido em votos. A votação que reconduziu Paulo Gonet à Procuradoria-Geral da República acendeu as luzes de alerta no Palácio do Planalto. Foi aprovação, sim, mas com uma margem tão apertada, tão pouco entusiasmada, que soou mais como advertência do que como chancela. Era o Senado dizendo ao presidente Lula: “não tente nos empurrar goela abaixo um nome para o Supremo Tribunal Federal”.
Messias não é o preferido
E esse recado tem endereço claro. A vaga aberta no STF, com a aposentadoria de Luís Roberto Barroso, virou o palco de uma disputa de forças entre o Executivo e o Legislativo. De um lado, o governo trabalha pelo nome do advogado-geral da União, Jorge Messias, figura de confiança do presidente, perfil leal e alinhado ao projeto político do Planalto. Do outro, o Senado, em bloco, e conduzido por Davi Alcolumbre com surpreendente coesão, articula para colocar na cadeira um dos seus. Rodrigo Pacheco, ex-presidente da Casa, visto pelos colegas como alguém capaz de representar o “espírito do Senado” dentro da Suprema Corte.
Não se trata apenas de preferência pessoal ou admiração. Trata-se de poder, e os senadores resolveram explicitar isso. 56 deles já manifestaram apoio a Pacheco para a vaga no STF. No cálculo político, isso significa algo muito simples: se Lula insistir em Messias, corre o risco real de ver sua indicação simplesmente rejeitada. E seria um fato histórico. A última vez que o Senado barrou um indicado ao Supremo foi no mandato de Floriano Peixoto, na Primeira República. De lá para cá, todos os presidentes conseguiram aprovar seus nomes, alguns com facilidade, outros com dificuldades discretas. Mas nenhum amargou um “não” público, explícito e constrangedor. Lula pode ser o primeiro. E Brasília sabe o peso simbólico disso.
É aqui que a política ganha sua beleza amarga, o Senado percebeu que tem a faca, o queijo e até o prato na mão. Depois de anos atuando como carimbador automático de indicações do Executivo, resolveu exercer o poder que a Constituição lhe dá. A mensagem é clara: “quem escolhe o ministro do Supremo não é apenas o presidente; é o presidente mais o Senado”. Se há uma tentativa de Messias ser visto como nome “de gabinete”, ela reverbera como provocação entre os parlamentares. A palavra que ecoa pelos corredores é outra. Autonomia.
Lula, que se demonstra experiente, tem que provar essa versão e saber ler o ambiente. Brigar com o Senado nesta altura do campeonato, com uma reforma tributária pendurada, articulações delicadas na economia e pressões crescentes por parte de governadores e prefeitos, é abrir um flanco desnecessário. Sabe também que a relação entre os poderes anda mais sensível do que nunca. O Executivo empurra, o Legislativo resiste, o Judiciário observa. Um veto do Senado à indicação ao Supremo não é apenas um tropeço político, é a materialização de um rearranjo de forças que pode colocar em xeque a autoridade presidencial.
E é aqui que surge a pergunta que Brasília sussurra, mas ainda não ousou fazer alto: Lula terá coragem de comprar essa briga? Não parece. A temperatura política indica que o Planalto está recuando, ainda que silenciosamente. A indicação de Messias, tão dada como certa há algumas semanas, hoje trafega pela zona cinzenta da dúvida. Cada gesto do Senado, cada declaração pública, cada movimento coletivo, cada sinal de articulação, empurra Messias para fora do jogo e aproxima Pacheco da cadeira.
O Senado não quer apenas aprovar um nome. Quer escolher. Quer influenciar. Quer moldar o perfil da Corte num momento em que o STF se tornou o epicentro das tensões políticas, jurídicas e institucionais do país. Para muitos senadores, colocar Pacheco ali é sinalizar moderação; para outros, é garantir que o Supremo receba alguém que tenha vivido o desgaste da política, que entenda os limites entre poderes e que não chegue com espírito de guerra.
A conta é simples: se Lula insistir em Messias, arrisca sofrer a maior derrota institucional do seu terceiro mandato. Se aceitar Pacheco, perde a confiança do círculo progressista formado ao seu lado.
O Senado está fazendo o que sempre deveria ter feito, exercendo seu poder constitucional. É um choque saudável, ainda que desconfortável. O Brasil precisa de freios, contrapesos e do entendimento de que governar não é decretar, é negociar. A indicação ao STF virou símbolo desse novo tempo: o tempo em que o Senado descobriu que pode dizer “não”.
E se o Senado resolver falar grosso, é melhor ouvir. Um recado que deve ser percebido também pelo Judiciário. Porque o silêncio às vezes é só o intervalo entre o aviso e o atropelo.
