As primeiras pancadas de novembro chegam como um déjà-vu sonoro e líquido em Belo Horizonte. O barulho nas janelas é trlhas anuncia mais do que o alívio do calor: anuncia também a retomada de um ciclo previsível de riscos, sustos e promessas não cumpridas. A cidade que se orgulha de seus morros e vales volta a temer o que vem do céu, não pela força da natureza, mas pela fraqueza da prevenção.
Crônica do descaso anunciado
Todo ano é a mesma história: alertas da Defesa Civil, casas com rachaduras, muros inclinados, famílias desalojadas. O mapa de risco é quase o mesmo, por vezes nem mudam os nomes dos atingidos. A capital mineira, com sua geografia exuberante e acidentada, pede planejamento. Mas as políticas de prevenção voltam a ser tímidas, burocráticas, às vezes quase simbólicas, um mutirão aqui, uma limpeza de boca de lobo ali, um alerta nas redes sociais acolá. E só.
Enquanto isso, o solo saturado pelas primeiras tempestades faz o que é de sua natureza: cede. A água, quando não encontra caminho, inventa o seu, invadindo casas, derrubando muros, arrastando o que encontra. O que falta não é ciência sobre o problema, mas vontade política para enfrentá-lo com seriedade e continuidade. A Defesa Civil faz o que pode, mas quase sempre o que resta é apagar incêndios, ou melhor, enxugar enxurradas.
É preciso, também, reconhecer: a prevenção não é só dever do Estado. É dever de cada cidadão observar os sinais que a natureza dá. Uma rachadura no quintal, um muro que começa a se inclinar, um barranco que muda de cor ou textura, tudo isso fala. É o terreno pedindo socorro. A atenção da população é fundamental, não como substituto da ação pública, mas como sua aliada.
Falta ainda consciência coletiva. Não se pode jogar lixo nas ruas e esperar que os bueiros façam milagres. Não se pode construir sem planejamento e esperar que o solo aguente. Não se pode ignorar a topografia de uma cidade que nasceu em meio a montanhas e se espraia sobre encostas. O morro que desliza não o faz de repente: ele avisa. Nós é que fingimos não ouvir.
O Brasil, e Belo Horizonte é um retrato disso, age depois que o problema acontece. O gasto vem na reconstrução, não na prevenção. O discurso político é comovente depois do desastre, e o ciclo recomeça. O que a cidade precisa é de um programa contínuo de drenagem, monitoramento de encostas, reassentamento digno e políticas de moradia planejadas. Um plano de verdade, não de ocasião. Porque, com o clima cada vez mais instável e o adensamento urbano crescente, o improviso é um risco caro demais.
A chuva, afinal, é apenas o lembrete de que vivemos em uma cidade que insiste em não aprender com a própria história. O alerta ecoa mais alto a cada ano, não porque o volume d’água aumentou, mas porque a surdez administrativa se aprofundou.
Quando as nuvens se formam sobre o horizonte de BH, elas não trazem apenas água. Trazem a pergunta que teima em voltar, aprendemos algo com os verões passados? A resposta, infelizmente, continua escorrendo pelo ralo entupido de uma cidade que precisa se reinventar, antes que o próximo temporal cobre, mais uma vez, o preço da nossa omissão.
