Vivemos uma contradição gritante. A vida moderna nos empurra para frente como se estivéssemos em uma corrida permanente. Tudo precisa ser resolvido rápido: um boleto vencido que gera multa, uma vaga de emprego que se perde em horas, um processo médico que, se não andar, pode custar a saúde ou a própria vida. O relógio da existência, em todas as suas dimensões, não para. Ele exige velocidade, decisão, resposta.
E então entramos no carro. Diante do volante, a lógica se inverte: é preciso reduzir, segurar, conter a pressa. A consulta pública promovida pelo Ministério dos Transportes, que sugere como limite padrão para ruas urbanas 30 km/h, é um retrato disso. Os números são implacáveis: em 2023, quase 35 mil brasileiros morreram no trânsito. Nos últimos dez anos, 380 mil vidas foram ceifadas. Cada quilômetro a mais na pressa aumenta a chance de morte: a 30 km/h, um pedestre atingido tem 10% de chance de não sobreviver; a 50 km/h, esse número sobe para assustadores 85%.
Não há dúvida de que o guia está correto em propor a redução. A pressa no trânsito mata. Mas o paradoxo é cruel: enquanto no asfalto o Estado pede calma, no cotidiano ele nos condena à lentidão. Processos judiciais que se arrastam por décadas. Consultas médicas que demoram meses. Obras públicas que nunca terminam. Decisões políticas que se perdem na burocracia. Fora das ruas, a lentidão também mata, só que lentamente, corroendo oportunidades, desgastando a saúde, minando a confiança na democracia.
O campo de visão do motorista se reduz à medida que acelera, de 100 graus a 40 km/h para apenas 65 graus a 70 km/h. Mas o campo de visão do cidadão também se estreita quando passa a vida inteira preso em filas, em espera, em morosidade. No trânsito, desacelerar é ganhar vida; na vida, desacelerar demais é perder qualidade de vida.
Eis o anacronismo, o país que sugere reduzir a velocidade nas ruas para salvar vidas é o mesmo que mantém um ritmo insuportavelmente lento para resolver os problemas da vida em sociedade. Um motorista apressado pode causar um acidente. Um gestor público lento pode perpetuar tragédias silenciosas.
É evidente que as duas esferas precisam se encontrar. A prudência do trânsito deve conviver com a urgência da vida real. Não adianta salvar o pedestre na esquina se ele morrer na fila do hospital. Não adianta evitar um choque no cruzamento se a justiça demora vinte anos para reparar uma injustiça.
O que falta ao Brasil é um pacto de coerência temporal. Ser rápido onde a demora é fatal e ser lento onde a pressa é destrutiva. A 30 km/h no asfalto, para proteger quem anda a pé. Mas a 300 km/h na gestão pública, para garantir que saúde, justiça, educação e políticas sociais não se arrastem até a exaustão.
Entre o semáforo vermelho das ruas e o sinal verde da vida, precisamos aprender a dosar o tempo. Nas cidades, a velocidade controlada é civilizatória; na vida, a agilidade é libertadora. A pressa, no trânsito, é um risco. Mas a lentidão da máquina pública é, ela mesma, um acidente em câmera lenta.