Por Ana Terra Ferrari Guimarães
Durante muito tempo, o casamento foi a única forma reconhecida de constituir uma família. Tudo o que estivesse fora dele era tratado como algo menor, quase invisível aos olhos da sociedade e do Direito. Mas os tempos mudaram. A partir da Constituição de 1988, a união estável passou a ser reconhecida como uma forma legítima de formar família, com proteção jurídica e garantias importantes.
Esse reconhecimento, no entanto, trouxe novos desafios. Um dos mais controversos é o que acontece quando um dos companheiros morre. Mesmo que o casal tenha vivido em união estável sob regime de separação total de bens, a lei ainda considera o sobrevivente como herdeiro necessário. Ou seja: mesmo que o desejo do casal fosse o de manter patrimônios separados, na prática, essa separação não se concretiza totalmente após a morte de um dos dois.
Imagine a seguinte situação: Joana e Paulo viveram juntos por dez anos. Nunca se casaram, mas fizeram um contrato de união estável e escolheram o regime de separação total de bens. Cada um manteve seu patrimônio individual, como sempre desejaram. Quando Paulo faleceu, Joana descobriu que terá que dividir a herança dos bens particulares dele com os filhos do primeiro casamento. Tudo isso, mesmo tendo registrado, em cartório, que o desejo do casal era justamente evitar essa comunicação patrimonial, ou seja, evitar essa partilha.
Esse tipo de situação levanta uma questão central: até onde vai a liberdade de escolha das pessoas que vivem em união estável? Por que, mesmo optando conscientemente por manter seus patrimônios separados, a lei obriga o companheiro sobrevivente a herdar? A intenção da legislação, claro, é proteger quem fica. Mas e quando isso significa ignorar a vontade do casal?
Historicamente, a união estável sempre foi vista como um arranjo menos formal, mais livre. Era a alternativa para quem queria viver uma vida a dois sem tantas amarras. Com o tempo, o Direito buscou equiparar a união estável ao casamento, para garantir direitos iguais. Essa equiparação teve efeitos positivos: protegeu companheiros de situações de vulnerabilidade e assegurou direitos até então inexistentes.
Mas como toda equiparação, ela também teve um efeito colateral: a união estável começou a perder sua natureza contratual, baseada na autonomia da vontade. Ao ser tratada, cada vez mais, como um casamento de “nome diferente”, as pessoas passaram a ter cada vez menos liberdade para definir como querem se relacionar.
No caso da herança, o problema é ainda mais sensível. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 2017, que companheiros devem ter os mesmos direitos dos cônjuges na sucessão. Com isso, passaram a ser considerados herdeiros. A intenção é louvável: garantir igualdade. Mas, na prática, surgem situações bastante incômodas.
Muitos casais optam pelo regime de separação total justamente para evitar conflitos patrimoniais. Em especial, quando há filhos de relações anteriores. A herança pode se tornar motivo de disputa, ressentimentos e rupturas familiares. Para evitar isso, alguns companheiros chegam a incluir, em contrato de convivência, uma cláusula de renúncia à herança. Mas a maioria dos tribunais considera essa cláusula inválida, por entenderem que é proibido renunciar à herança de pessoa viva (segundo o art. 426 do Código Civil).
Essa interpretação, porém, tem sido criticada por alguns juristas. Eles argumentam que há confusão entre a proibição de “contratar a herança de um terceiro” e a possibilidade de duas pessoas, plenamente conscientes e em comum acordo, decidirem não se beneficiar da herança uma da outra. Não se trata de negociar a herança de um estranho, mas de respeitar a vontade expressa de quem viveu junto.
E esse ponto é fundamental: respeitar a vontade dos indivíduos. O Direito de Família moderno tem caminhado para reconhecer as mais diversas formas de constituir família. Já falamos de uniões homoafetivas, multiparentalidade, famílias reconstituídas e outros tantos arranjos. Se reconhecemos a pluralidade familiar, precisamos reconhecer também a pluralidade de desejos dentro dessas relações.
A pergunta que fica é: até onde vai a proteção estatal, e onde começa o direito de cada um de escolher como quer viver (e morrer)? Garantir a liberdade de escolha também é uma forma de proteger. E, nesse caso, não se trata de excluir o companheiro de qualquer proteção, mas de reconhecer que há casos em que ele ou ela não desejam ser herdeiros, porque isso contraria os acordos e equilíbrios estabelecidos em vida.
A solução não é simples. Mas talvez passe por um caminho de meio termo: permitir, com regras claras, que a renúncia ao direito de herança seja feita de forma expressa, consciente e validada juridicamente. Isso preserva a liberdade sem abrir espaço para abusos.
Em tempos em que tanto se fala em afetividade, empatia e respeito à individualidade, o Direito de Família não pode perder de vista o que o trouxe até aqui: ouvir as famílias reais, com seus desejos, medos, conflitos e escolhas. E, entre essas escolhas, deve caber também a de não herdar.
Afinal, mais do que uma disputa por patrimônio, o que está em jogo é o direito de viver (e morrer) com autonomia e respeito.
- Ana Terra Ferrari Guimarães é advogada, professora e pesquisadora na área de Direito de Família e Sucessões. Mestre em Psicologia pela UFMG e autora de artigos acadêmicos e jurídicos. Atua com foco na proteção das relações familiares e na valorização da autonomia privada nas relações afetivas.