“A escola come o nosso dia”, “ninguém tem culpa pelo seu fracasso, somente você” , “a escola complica a vida do empreendedor”. As falas que abrem esta reportagem foram tiradas do vídeo “adultização”, publicado pelo youtuber Felca em 11 de agosto, e revelam como meninos e meninas têm sido empurrados para o trabalho precoce.
Mas, para além da dimensão jurídica do trabalho, que impede ocupações remuneradas a menores de 16 anos, com exceção dos aprendizes aos 14, quais os impactos na saúde mental e no desenvolvimento de crianças e adolescentes que desempenham “trabalho”?
Para o psicanalista, escritor e psicólogo Eduardo Lucas Andrade, é um peso para a criança “ser uma coisa só”. Segundo ele, é importante pensarmos a dimensão do faz de conta, o faz de conta que tem se perdido.
“A criança brinca no faz de conta de ser bombeiro, de ser policial, de ser jogadora de futebol, de ser, enfim, várias coisas. Entretanto, ela faz isso no faz de conta, guarda a sua caixinha de brinquedo e vai dormir, vai fazer suas tarefas, vai para a escola. No outro dia, ela não quer mais aquilo, já quer outra coisa. Ela quer a dimensão de voar sem precisar de um avião para carregá-la. Então, a criança estrutura várias formas de ser nesse mundo, dentro de um faz de conta que ela não tem compromisso de ser obrigada àquilo”, explica.
‘Se a criança perde a liberdade, ela não desenvolve’
Eduardo explica que as rédeas da lei precisam ser tomadas para proteção das crianças e, do ponto de vista psicanalítico, as crianças precisam ter espaço para se desenvolverem. “Se a criança perde a liberdade ela não desenvolve, ela se envolve. Desenvolver é justamente a capacidade de envolver e não envolver mais”, pondera.
O especialista afirma que a fase de descobertas das crianças impõe testes aos adultos, que devem protegê-las e garantir o desenvolvimento adequado delas.
“Nessa época da vida a criança está cheia de curiosidade, cheia de questões para conhecer o mundo, as coisas, mexer, descobrir, abandonar, deixar pra lá, sempre num viés de um adulto protegendo, de um adulto sendo testado. Esse adulto sendo testado ele tem que fazer um trabalho de não deixar a criança cair nos execessos e de não cobrar, porque a criança não trabalhou a questão do trabalho dentro de um tempo necessário do trabalho psiquíco”.
A importância do trabalho psíquico
“O trabalho psíquico é justamente um exercício de se reconhecer no mundo e fazer pequenos testes para ver se vai gostar ou não daquilo. Nesse campo, a curiosidade bate. Aí ‘eu quero conhecer os trabalhos do meu pai’, eu quero subir para trocar a lâmpada de poste, eu quero conhecer como é que trabalha minha mãe, eu quero conhecer como é que meu tio faz, como é que a dinâmica e muitas vezes vai entender rápido. E vai poder largar aquele brinquedo, porque para ela é um brinquedo e ir para outra coisa”, explica.
Eduardo alerta que o desenvolvimento psíquico de crianças e adolescentes deve ser respeitado. Na visão dele, quando o tempo da criança se transforma em dinheiro, por meio de rotinas e funções execessivas, ocorre um problema enorme do ponto de vista do trabalho mental.
‘O preço [do trabalho precoce] não é monetário, mas de existência psíquica: a falta de sentido para lidar com o mal-estar da vida’.
“Quando isso vira compromisso e o tempo da criança se transforma em dinheiro, a gente tem um grande problema. Um problema enorme no desenvolvimento psíquico. Um problema enorme do vazio de sentido. Onde não tem sentido, a gente não tem condição de dar conta da dinâmica da vida. Sabe onde a gente tem perdido o sentido? Tanto no universo adulto quanto nas crianças? Na busca de prazer em prazer achando que enche o papo. De prazer em prazer a gente está esvaziando o sentido. Nem todo o sentido é na dinâmica do prazer”.
“Talvez é da dinâmica de lidar com o mal-estar, de lidar com uma pequena falta, de lidar com o sonhar, de poder desejar porque não tem, de poder relaxar, fazer de conta, descansar, respirar, contemplar, um monte de coisas. Então não é só prazer que vem trazendo. Quando um adulto faz esse empuxo à criança: ‘Ah, mas ela tá gostando’. É um compromisso do adulto cortar os excessos”, crava.
Eduardo Lucas Andrade sinaliza a importância da atuação dos adultos no controle dos execessos que, caso não trabalhados, podem gerar dependências. “Ah, mas ela está bem [a criança]’, veja, a aparência de estar bem, muita vezes para agradar um outor e não ter o desamor, não se transfigura sempre no rosto”, diz.
Likes ou dinheiro: um preço caro a se pagar
No caso de crianças e adolescentes que desenvolvem “trabalho” nas redes sociais, e lidam com likes e comentários diretamente, ou ainda com dinheiro em si, Eduardo diz que o risco está, justamente, no olhar do outro.
“Tenho ali um outro que eu nem sei quem é, mas que está me favorecendo, me reconhecendo, então eu existo. Ali eu tenho o poder, tenho o olhar do outro, tenho aplausos. Ou então para números financeiros, que a criança sequer sabe como funciona o sistema direito, não se preparou para aquilo. Ali a criança, então, paga um preço muito caro e o preço ali não é monetário”, define.
“Nem todo sentido está na dinâmica do prazer. Muitas vezes é da dinâmica de lidar com a falta, com o sonhar, com o descansar. Quando um adulto empurra a criança para o excesso, mesmo que pareça que ela está bem, muitas vezes é só para agradar e não perder o amor do outro. Isso gera dependência. Essa criança já não sabe mais o que quer, mas sabe o que o outro espera dela, e ali ela existe”, pondera.