A votação do projeto de lei anti-facção na Câmara dos Deputados foi mais do que uma derrota para o governo Lula. Foi uma demonstração de força do Congresso e um retrato fiel do isolamento do Planalto diante da pauta que hoje mais mobiliza o país: a segurança pública.
O projeto foi aprovado por 370 votos a favor, contra 110 votos contrários, 3 abstenções e 29 ausências. É um placar que dispensa interpretação. Uma maioria esmagadora. Uma sinalização clara de que a Câmara está conectada ao sentimento das ruas, e o governo, não.
O apoio foi apenas ideológico
Há um elemento simbólico importante, PT e PSOL votaram de forma unânime contra o projeto. Toda a bancada dos dois partidos se manteve contrária, obedecendo à orientação do Planalto. Mas ficaram sozinhos. Nenhum outro grupo político relevante acompanhou a posição do governo. A base ideológica permaneceu unida, mas o governo ficou isolado no plenário.
Partidos que costuram a base de apoio ao Planalto, MDB, PSD, PSB, PDT, União Brasil, romperam em peso. Boa parte de suas bancadas votou a favor do projeto. Alguns líderes partidários foram para o microfone defender o endurecimento das regras contra o crime organizado. Foi uma dissidência aberta, ampla, visível. É impossível minimizar.
O motivo é simples: o país está cansado. Cansado da expansão das facções. Cansado da violência que avança para cidades médias. Cansado da sensação de que o Estado perdeu território para o crime. E quando o país está cansado, ele pressiona.
Deputados de Norte, Nordeste e Centro-Oeste, regiões mais atingidas pelas facções, votaram praticamente em bloco pelo endurecimento da lei. Sul e Sudeste acompanharam com margens generosas. Quase não houve resistência regional. A resistência foi ideológica, e minoritária.
O governo, que poderia ter construído uma alternativa, não construiu.
Não apresentou substitutivo, não liderou o debate, não articulou, e nem teve presença efetiva em plenário.
Deputados da base reclamaram publicamente da falta de diálogo. Relataram que nenhum ministro fez corpo a corpo, que não houve pedido de voto, que não houve esforço real de convencimento. A articulação política deixou a votação correr solta, e foi atropelada.
O governo sabia que perderia, mas esperava um placar apertado. Não esperava um massacre de 370 a 110. O governo perdeu o centro, perdeu o centro-esquerda pragmático, perdeu o centrão fisiológico, perdeu até parlamentares considerados aliados. Foi uma derrota política com consequências.
Em seu caminho natural o projeto depois da Câmara vai para o Senado, e, é lá que o governo costuma minimizar danos, é lá que Lula, historicamente, tem maioria sólida, relação mais fluida com lideranças e capacidade de ajustar trechos problemáticos. O Planalto respira melhor no Senado.
Mas há um risco claro, e o governo sabe disso, o tema tem enorme apelo popular. E senador, apesar do longo mandato, é extremamente sensível ao clima político nacional. A possibilidade de uma nova derrota no Senado não é fantasia. É um risco real. Porque segurança pública virou prioridade absoluta do eleitorado brasileiro.
O governo pode tentar negociar ajustes, suavizar trechos e recompor pontes. Mas não pode ignorar que, no tema da segurança, perdeu completamente o protagonismo. A votação mostrou que o Congresso tomou para si a liderança da pauta, e dificilmente vai devolvê-la.
O isolamento de PT e PSOL não fortalece o governo. Ao contrário: deixa claro que a base ideológica, embora unida, não arrasta mais ninguém. A Câmara falou pelo país, e o país pediu endurecimento, não hesitação.
A derrota na Câmara foi pesada. A batalha agora segue e chegará ao Senado. E, mesmo com maioria governista, o Planalto sabe que pode ser surpreendido.
Quando o tema é facção criminosa, quem controla o rito é o medo, e o medo, hoje, não está do lado do governo.
O jogo não terminou. Mas a Câmara mudou o rumo da partida. E o governo Lula entra na próxima fase sabendo que não tem no tema segurança pública um território político seguro.
