Eles trafegam clandestinamente, fazendo o transporte de passageiros pelas estradas oficiais do país.
“Viajar nessas condições é entrar em um caminho sem destino certo, sem seguro, como um pau de arara dos tempos atuais”, alerta o consultor e advogado especialista em regulação do transporte rodoviário, Ilo Löbel da Luz.
Para ele, o avanço do transporte clandestino de passageiros é alarmante. “O risco envolve veículos sem manutenção adequada e motoristas sem controle de jornada, que extrapolam os limites estabelecidos por lei.”
Em Minas Gerais, o esquema transforma rodovias públicas em corredores de risco — ainda mais às vésperas das viagens de fim de ano e das férias de janeiro, quando cresce o volume de passageiros e a fiscalização encontra mais obstáculos para conter o avanço do transporte ilegal.
Levantamento da Rede 98, com base em informações oficiais, grupos de mensagens usados para a compra de passagens e sites de empresas envolvidas, mapeou rotas clandestinas de transporte rodoviário de passageiros em diferentes regiões do Estado. Ao menos 15 redes empresariais foram identificadas atuando de forma irregular, com venda aberta de passagens — inclusive pela internet —, simulação de linhas regulares e uso indevido de autorizações federais para transporte interestadual. Mas, na prática, operam viagens em trechos curtos, dentro do próprio estado, fora do modelo de concessão.
As rotas cortam importantes rodovias do Norte e do Sul de Minas, da Grande BH, do Vale do Jequitinhonha, do Vale do Rio Doce e do Centro-Oeste. O volume de viagens e a diversidade de operadores fazem de Minas um retrato do que ocorre hoje em todo o país, como descreve Hugo Rodrigues, superintendente de fiscalização da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Transporte Clandestino
🛣️ CORREDORES ILEGAIS
COMO FUNCIONA O ESQUEMA
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📲Venda Digital e Pagamento RápidoPassagens negociadas via WhatsApp/Redes Sociais. Pagamento facilitado via PIX para evitar rastros físicos.
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🏙️Embarque ImprovisadoFuga das rodoviárias. O embarque ocorre em postos de gasolina, praças e ruas escuras.
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🕗Horário de Risco (18h – 24h)Operações se concentram à noite para dificultar a visualização da precariedade de veículos e fugir de blitz.
“Tirando São Paulo, Minas é o principal ponto de origem e destino do transporte clandestino no país. Também é rota de passagem, pelo tamanho do estado e pela extensa malha rodoviária. Quando ocorre um acidente – algo possível em qualquer veículo -, no transporte clandestino as consequências costumam ser mais graves: não há seguro, e os passageiros ficam desamparados”, afirma.
A ANTT é responsável pela regulação dos serviços interestaduais de transporte de passageiros e tem papel central no combate ao uso indevido de autorizações federais. O órgão admite dificuldades na fiscalização, mesmo com o uso de inteligência e trabalho integrado com órgãos estaduais. A reportagem solicitou dados sobre ações de fiscalização em Minas e aguarda resposta.
Próximo à Praça Raul Soares, no Centro de Belo Horizonte, a reportagem da Rede 98 acompanhou a espera de Maria, que voltava para a casa da mãe, na Bahia. O pai, que foi se despedir, diz ter escolhido a companhia pelo preço mais baixo e pela promessa de chegar direto ao destino final.
“Se tivesse opção na rodoviária com esse valor, eu preferia. Mas aqui é mais barato. Paguei xx; lá seria xx, e ela ainda não chegaria ao destino final”, diz. Ele afirma confiar nos ônibus, embora reconheça que amigos da família já enfrentaram problemas em viagens clandestinas, como falhas mecânicas e trocas repentinas de veículos.
Questionado sobre a presença dos ônibus naquele ponto, um vendedor ambulante que trabalha no local responde, rapidamente: “Eles tinham dado uma parada, agora estão voltando”.
Em decisão recente, a ANTT aprovou uma nova regra que padroniza as punições para o transporte rodoviário interestadual de passageiros. A decisão reúne todas as infrações em uma só norma e busca facilitar a fiscalização. Segundo a agência, a medida também reforça a segurança e os direitos de quem viaja de ônibus entre estados.
Fiscalização desafiadora
Os corredores mais explorados pelo transporte clandestino passam pelas principais rodovias do estado: BR-381, BR-135, BR-040, BR-251 e BR-120. Nessas estradas, os veículos partem diariamente, sobretudo entre o fim da tarde e a noite, usando pontos fixos de embarque em avenidas, ruas, praças e áreas próximas a terminais rodoviários, sem garantias mínimas ao passageiro.
O sistema paralelo se intensifica em períodos de alta demanda, coloca em risco a vida de milhares de passageiros e desafia as autoridades. Pedro Calixto, secretário-adjunto da Secretaria de Infraestrutura, Mobilidade e Parcerias do Governo de Minas, ressalta que a clandestinidade também impacta os cofres públicos.
“O principal prejuízo são as vidas. Isso não pode ser negligenciado. Nem todo transporte fora das linhas regulares é clandestino — há serviços fretados autorizados pelo DER. Mas, seja fretado ou regular, o veículo precisa estar em boas condições de manutenção. Passagens muito baratas, que não cobrem nem os custos mínimos, são um sinal de alerta. O transporte irregular aparece nos horários de maior interesse e pode simplesmente cancelar viagens. Já o sistema regulamentado contribui com a arrecadação e sustenta serviços públicos”, afirma.
Neste fim de ano e nas férias de janeiro, o foco das fiscalizações do DER em Minas são viagens que passam por cidades-polo como Belo Horizonte, Ipatinga, Governador Valadares, Montes Claros e Juiz de Fora. A Rede 98 procurou o DER-MG, responsável pela fiscalização do transporte intermunicipal, e solicitou dados sobre multas e rotas mais utilizadas por empresas que atuam ilegalmente. O órgão ainda não respondeu.
Flagrantes: venda na calçada, embarque improvisado e promessa de preço baixo
Nas imediações da Rodoviária de Belo Horizonte, o cenário é explícito. Trata-se de um modelo de atuação que perdeu espaço para as vendas digitais, mas ainda resiste à luz do dia. Homens anunciam destinos em voz alta: Ipatinga, Governador Valadares, Barão de Cocais e cidades históricas como Ouro Preto e Mariana.
A reportagem simulou a compra de uma passagem para Barão de Cocais, vendida a R$ 90. O embarque ocorreria fora da rodoviária, em veículo particular, sem identificação da empresa, horário definido ou seguro viagem. Dentro da rodoviária, o mesmo trajeto custava pouco mais de R$ 60, em ônibus regulares, com horários fixos e estrutura adequada. Nesse caso, o preço oficial era menor — mas nem sempre é assim, o que empurra muitos passageiros para a ilegalidade.
Pedro Calixto explica que o combate ao transporte irregular ocorre em várias frentes, mas esbarra em limites legais e geográficos.
“Além das blitz nas rodovias, usamos inteligência para mapear pontos críticos e recorrentes. Na rodoviária de BH, por exemplo, monitoramos abordagens irregulares no entorno. Nossa atuação se restringe a veículos com origem e destino dentro de Minas; os que apenas atravessam o estado são de responsabilidade federal. Mesmo com parcerias, Minas tem 853 municípios e uma área territorial enorme. Isso torna o trabalho desafiador”, diz.
Mais do que insegurança nas estradas, o transporte clandestino altera a vida urbana. A dona de casa Lilian, moradora da região Centro-Sul de Belo Horizonte, conviveu por anos com um ponto informal de embarque e desembarque ao lado de casa.
“Era uma bagunça diária. Gente na calçada, ônibus parando a qualquer hora, barulho e sujeira. Em dias de maior movimento, ficava um odor de urina, porque não havia banheiro para os passageiros”, recorda.
Segundo ela, o fluxo intenso mudou a rotina da vizinhança e trouxe insegurança constante. Hoje, com o ponto desativado, Lilian retomou os passeios diários com o cachorro, Fred.
“As empresas que operam legalmente são obrigadas a manter linhas e horários mesmo quando há prejuízo, atender cidades pequenas, rodar em horários de pouco movimento e garantir gratuidades previstas em lei, como para idosos”, explica Zaira Carvalho, assessora jurídica do Sindpas, sindicato que representa as empresas de transporte rodoviário de Minas Gerais, concessionadas, reguladas e fiscalizadas pela Seinfra.
A capilaridade do serviço ilegal preocupa. “O fato de o transporte clandestino funcionar todos os dias, embarcando passageiros em ruas e praças, mostra que a fiscalização precisa ser mais efetiva, contínua e integrada”.
Em Montes Claros, no Norte de Minas, a reportagem da Rede Mais flagrou essas operações em plena luz do dia. Mesmo fora do horário de pico, ônibus realizam embarque e desembarque em pontos improvisados, sem estrutura adequada ou controle oficial.
Uma passageira, que prefere não se identificar, relata que os locais de saída e chegada mudam conforme a plataforma de venda, enquanto motoristas circulam sem identificação clara do serviço prestado.
Em outro ponto da cidade, ao menos três ônibus operavam simultaneamente. Segundo os próprios usuários, o movimento aumenta no fim da tarde e à noite, podendo chegar a dezenas de viagens, a depender da época. Também foram flagrados ônibus parados na rodovia e passageiros embarcando em frente a um local conhecido por reclamações recorrentes de atrasos, falhas mecânicas e más condições de viagem.
O cenário revela uma operação estruturada, à margem da lei e da fiscalização, justamente às vésperas do período de maior fluxo de viagens do ano.
Mercado legal sob ameaça
O problema extrapola a segurança individual e atinge o setor legalizado. Empresas regulares, submetidas a regras, impostos e fiscalização, concorrem com operadores clandestinos que reduzem custos cortando justamente áreas que protegem o usuário.
A advogada Letícia Pineschi, conselheira da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), afirma que a concorrência desleal fragiliza o sistema.
“A desregulamentação é um risco real. Se nada for feito, caminhamos para um colapso do sistema legal. Há precarização da frota, dos profissionais — muitos sem registro ou habilitação adequada — e dos serviços de suporte ao usuário. O passageiro embarca no meio da rua, no escuro, na chuva, sem qualquer proteção. Isso compromete a segurança e o atendimento em casos de bagagem, assalto ou problemas na viagem”, diz.
Para ela, o modelo de fiscalização precisa ser atualizado.
“Hoje ainda se depende demais de operações presenciais nas estradas, que custam caro e enfrentam burocracias que atrasam ou inviabilizam ações. Com as câmeras já existentes em estradas e cidades, é possível identificar veículos, mapear rotas e cruzar dados com os órgãos reguladores, abrindo investigações mais rápidas e eficientes.”
Ilo Löbel da Luz defende que o enfrentamento passe por diálogo direto entre empresas e poder público, com participação do órgão regulador e do Ministério Público, para construir alternativas viáveis ao usuário.
“Não adianta só fiscalizar; é enxugar gelo. O caminho é reduzir custos e oferecer um serviço mais simples, com tarifas menores e veículos adequados, como vans, além de ajustes em horários e linhas. Se ficar apenas na aplicação da lei, o sistema se engessa e perde competitividade. Para o usuário, o preço faz toda a diferença.”
Hugo Rodrigues, superintendente de fiscalização da ANTT, defende o enfrentamento ao crime com sistemas de inteligência e integração entre órgãos.
“O transporte clandestino usa tecnologia para escapar da fiscalização, com troca de informações em tempo real para antecipar operações. É muito mais difícil mapear operadores que atuam fora do sistema. Sem trabalho conjunto, o combate se torna inviável. Por isso, buscamos atuação integrada com a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Militar, o DER e outros parceiros. Nosso efetivo é limitado, e a informação compartilhada é essencial para mapear pontos de embarque e agir na origem, impedindo que a viagem clandestina aconteça.”