Há algo de profundamente equivocado quando o poder central tenta criar um “SUS da segurança pública”, uma política unificada, com diretrizes de gabinete e pouca escuta da realidade das ruas. O governo federal, embalado pelo discurso de combate ao crime organizado e pela comoção da ação contra a facção criminosa do Rio, quer impor uma lei de segurança pública nacional que, na prática, ignora o que cada Estado vive, sente e enfrenta. É a velha tentação de Brasília achar que o Brasil cabe num PowerPoint.
O equívoco da centralização
A ideia de uma política nacional de segurança pública não é ruim em si. Ao contrário, o país precisa, e com urgência, de um eixo comum que integre inteligência, dados, fronteiras e articulação entre as forças policiais. O problema é quando esse eixo se transforma num rolo compressor burocrático, que atropela as diferenças regionais. O Acre não tem as mesmas demandas que o Rio Grande do Sul; o Espírito Santo não enfrenta os mesmos dilemas que o Amazonas. Há lugares em que o tráfico domina, outros em que o garimpo ilegal corrói instituições, e outros ainda em que o problema é o crime ambiental. Tratar todos sob o mesmo protocolo é como receitar o mesmo remédio para doenças diferentes, a cura vira placebo.
O Brasil real e o Brasil de gabinetes
O Brasil real, o das ruas, das delegacias sem viaturas, das guardas municipais que viraram primeiras respostas a tudo, precisa ser ouvido. Os secretários estaduais de Segurança Pública, que conhecem o cheiro da pólvora e o barulho da sirene, não podem ser convidados de última hora para a mesa. Eles deveriam ser coautores da política, não figurantes num teatro de intenções.
Quando Brasília decide sozinha, o resultado costuma ser uma política que funciona bem em PowerPoint e mal em patrulha. Foi assim com tantos planos nacionais: bonitos no discurso, inócuos na prática. A segurança não se constrói de cima para baixo, ela nasce da ponta, das realidades locais, e depois sobe para o plano nacional.
O que o país precisa é de um pacto federativo de segurança, e não de uma centralização travestida de integração. Um pacto que una União, Estados e municípios, cada um com suas competências e responsabilidades bem definidas, com recursos proporcionais e metas realistas. É preciso falar de financiamento, de inteligência integrada, de capacitação, de tecnologia, de prevenção social, e, sobretudo, de respeito às diferenças regionais.
Não se faz segurança pública apenas com armas e viaturas; faz-se também com políticas sociais, educação e emprego. A ausência de coordenação entre as esferas de poder é uma das razões do fracasso histórico nessa área. Mas coordenação é diferente de controle. A primeira nasce do diálogo; o segundo, da desconfiança.
A segurança pública nacional deve ser construída como um mosaico, e não como um carimbo. Se Brasília quer liderar, que lidere ouvindo. Que desça dos gabinetes, caminhe pelas vielas, sinta o calor dos batalhões e o cansaço das guardas municipais. A política nacional de segurança pública só fará sentido quando o Brasil for chamado à mesa. Porque segurança não se impõe, se constrói. E se constrói junto.
