Belo Horizonte já foi apresentada ao Brasil como a capital da qualidade de vida, da praça acolhedora, da esquina democrática onde a conversa, o cafezinho e a gentileza costuravam a alma mineira. Hoje, porém, a cidade guarda um segredo à vista de todos, um segredo espalhado pelas calçadas, sob marquises, ao lado de semáforos, no hipercentro e nas avenidas que antes representavam modernidade. É a população de rua, essa ferida exposta que BH preferiu normalizar em vez de tratar.
O que se vê não é apenas pobreza. Não é uma estatística fria das pastas de assistência social. É desleixo público, cegueira ideológica e um tipo de crueldade que se veste de humanismo para disfarçar a omissão. Transformamos vidas partidas em ornamentos urbanos. Viraram parte da paisagem como grafites, postes e árvores, e, pior, há quem comemore isso como se fosse um ato de “proteção”.
Há anos criou-se uma narrativa tão hipócrita quanto perniciosa, a de que retirar alguém da rua, encaminhar para abrigo, exigir tratamento, recuperar vínculos e impor acompanhamento social seria um ato autoritário. Que deixar o morador de rua “onde ele quiser estar” seria respeitar sua autonomia. Autonomia?
Autonomia é escolha, e ninguém escolhe dormir num pedaço de papelão cercado de violência, fome e medo. Na rua não existe liberdade; existe sobrevivência.
Quando a rua vira sobrevivência, a cidade vira selva.
Belo Horizonte hoje convive com barracas improvisadas que avançam sobre calçadas e praças, tornando o espaço público um campo de tensão permanente. E o poder público, incapaz de enfrentar o problema, ou incapacitado por suas próprias amarras ideológicas, prefere administrar o caos. Opera uma política pública que não é política nem pública: é omissão de luxo, embalada por palavras bonitas.
E assim, a cidade se acostumou. Como quem convive com um vazamento de água por tanto tempo que já esqueceu do barulho, BH conviveu com o drama da população de rua até transformá-lo em som ambiente.
Hoje, dá-se mais prioridade ao discurso do que ao ser humano. E isso, por si só, já é uma tragédia moral. Mas há uma segunda tragédia, ainda mais incômoda; quem lucra com esse caos? Porque alguém sempre lucra.
Há grupos que se alimentam ideologicamente da miséria. ONGs que não sobrevivem sem problema para administrar. Políticos que pregam palavras doces, mas não movem uma palha para criar políticas reais. Ativistas de sofá que defendem a permanência dos vulneráveis na rua como se fosse um “direito”. E a pergunta cruel retorna. Quem ganha deixando gente perdida, adoecida e exposta?
A resposta amarga é simples: ninguém ganha, mas alguns fingem que ganham. A cidade perde, o morador de rua perde. E, enquanto isso, Belo Horizonte parece ter desaprendido o que sempre soube: que humanidade não é discurso; é ação.
A cidade que sempre se orgulhou da solidariedade virou uma espectadora muda do sofrimento à sua porta. BH deixou de resgatar para preservar, deixou de tratar para tolerar, deixou de combater para discursar. E cada morador de rua abandonado à própria sorte é um lembrete de que essa política “humanista” nada mais é do que uma vitrine de covardia.
É preciso coragem para dizer o que muitos evitam, seja por culpa, medo de crítica ou apego ideológico. A rua é o pior lugar possível para alguém viver. Ela expõe a violência física, a violência emocional, a violência sexual. A rua expõe o desamparo que nenhum ser humano deveria conhecer. É indigno, é desumano e é perverso defender essa permanência.
BH precisa recuperar a vergonha, e voltar a ser humana de verdade, sacudir a poeira ideológica e trabalhar com firmeza, e não com slogans, para resgatar essas pessoas. Isso envolve enfrentar vícios morais, desmontar estruturas que lucram com a tragédia, cobrar políticas sérias da prefeitura, exigir responsabilidade de vereadores que fazem discurso fácil e empurrar a cidade de volta ao campo da racionalidade.
Chegou a hora de BH se olhar no espelho e admitir: a capital está falhando com seus mais vulneráveis. Falhando com aqueles que perderam tudo, até mesmo o direito de serem tratados como cidadãos.
A rua não é lar. O asfalto não é cama. A violência não é destino. E nenhum discurso, por mais doce ou “progressista” que tente soar, conseguirá inverter essa verdade moral tão simples quanto incontornável. Proteger alguém é resgatar, tratar, recuperar, não deixá-lo morrer lentamente sob o pretexto da liberdade.
Que BH reencontre sua coragem. Porque sem coragem, a cidade continuará apenas convivendo com o caos, e fingindo que isso é humanidade, travestida de uma falsa liberdade.
