Nesta quinta-feira (09), a montadora chinesa BYD inaugura oficialmente sua nova fábrica em Camaçari (BA), contando com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ministros, autoridades estaduais e executivos da empresa. O investimento será de R$ 5,5 bilhões para consolidar o Brasil como polo estratégico da empresa na América Latina.

O evento, revestido de simbolismo e promessa de modernidade, é também um exercício de dissimulação: no pano de fundo desta cerimônia grandiosa, persistem graves acusações contra a BYD, hoje alvo de processo milionário por tráfico de pessoas e manutenção de trabalhadores em condições análogas à escravidão em sua planta da Bahia. O Ministério Público pede uma indenização de R$ 257 milhões para reparação. A denúncia foi oferecida após a BYD e a JinJiang Construction se recusarem a assinar um termo de ajuste de conduta (TAC).

A BYD tentou se defender após as denúncias se tornarem públicas ao romper o contrato com a JinJiang. Mas documentos anexados ao inquérito mostram que os trabalhadores eram subordinados diretamente à montadora chinesa. O processo segue ativo e em andamento no Ministério do Trabalho da Bahia.
É imprescindível que esse contraste seja exposto. Não basta inaugurar uma fábrica com pompa e circunstância se o passado contiver manchas que ofendem direitos humanos elementares.
As denúncias que a BYD tenta silenciar:
- Autuação por condições análogas à escravidão
Em junho de 2025, o Ministério do Trabalho autuou diretamente a BYD como empregadora responsável pela submissão de 163 trabalhadores chineses a condições análogas à escravidão durante a construção da fábrica em Camaçari.
Embora a empresa alegue que esses trabalhadores foram contratados por uma terceirizada, o governo discordou dessa argumentação, apontando vínculo direto e subordinação estrutural, o que inviabiliza a tese da terceirização.
Auditores fiscais identificaram fraudes contratuais, jornadas exaustivas, alojamentos degradantes e outras irregularidades que caracterizam o trabalho em condições insalubres.
- Processo de R$ 257 milhões por tráfico de pessoas e dano coletivo
Em maio de 2025, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou ação contra a BYD e outras empresas ligadas (China JinJiang Construction Brazil Ltda. e Tonghe Equipamentos Inteligentes) pleiteando condenação por tráfico internacional de pessoas, além de danos morais coletivos no valor de R$ 257 milhões.
O processo acusa que trabalhadores foram trazidos da China sob cláusulas contratuais abusivas como por exemplo, retenção de passaporte, depósito inicial, obrigação de remeter parte dos salários ao país de origem, práticas que configuram coerção e dependência econômica.
Além disso, fiscais do trabalho encontraram evidências de alojamentos degradantes: ambientes sujos, banheiros insalubres, falta de iluminação, condições mínimas de segurança, e trabalhadores submetidos a jornadas extenuantes.
- Cláusulas contratuais vexatórias e retenção de documentos
Reportagens da Reuters e de outras agências internacionais revelaram que os contratos assinados pelos trabalhadores continham cláusulas vexatórias: depósito reembolsável apenas após seis meses, exigência de remessa de grande parte dos salários à China, retenção de passaportes e penalidades pela rescisão antecipada.
Os trabalhadores ouvidos pela reportagem e pelos fiscais afirmaram que, se desistissem do trabalho, seriam obrigados a pagar o valor da passagem aérea de retorno à China — o que segundo o MP, impõe uma coerção econômica direta.
Trabalho forçado

De acordo com o auto de infração, a BYD estruturou um esquema fraudulento para trazer centenas de trabalhadores chineses ao país sem vínculo empregatício formal, induzindo ao erro tanto os trabalhadores quanto às autoridades migratórias brasileiras. Entre as práticas enganosas constatadas estão a promessa de salários que não se concretizaram, a não entrega dos contratos de trabalho aos empregados e a falsa indução de que todo o processo estaria em conformidade com a legislação nacional. Muitos trabalhadores foram levados a acreditar que a migração era voluntária e que poderiam encerrar o contrato a qualquer momento, o que, na prática, não era possível.
Condições degradantes

Os trabalhadores estavam submetidos a condições de vida e trabalho extremamente precárias. Dormiam em camas sem colchões e não dispunham de armários, sendo obrigados a manter seus pertences misturados a ferramentas de trabalho e alimentos – tanto crus quanto cozidos. Em um dos alojamentos, havia apenas um banheiro disponível para um grupo de 31 pessoas, o que os obrigava a acordar às 4h da manhã para conseguirem se preparar para a jornada. As cozinhas funcionavam em ambientes insalubres, com alimentos armazenados próximos a materiais de construção. Apenas um dos alojamentos contava com um refeitório improvisado, o que levava a maioria dos trabalhadores a fazer suas refeições nas próprias camas. A água consumida era retirada diretamente da torneira, sem qualquer tipo de tratamento.
Jornada exaustiva

A jornada de trabalho imposta era de, no mínimo, 10 horas diárias, sem a concessão regular de folgas. Um trabalhador acidentado relatou aos fiscais em junho deste anos que estava há 25 dias sem descanso. Durante a fiscalização, foram identificados diversos riscos à saúde e segurança, o que levou ao embargo de escavações profundas e à interdição parcial de um alojamento e de uma serra circular de bancada, devido à ausência de dispositivos de proteção. Também foi constatada a restrição à liberdade de locomoção: os trabalhadores precisavam de autorização até mesmo para se deslocar ao mercado.
As autoridades classificaram tais práticas como “semelhantes à escravidão”.
Inauguração com máscara institucional e apagamento de crise
Em seu discurso de inauguração, a BYD e os governantes que a acompanham tentam transmitir uma narrativa de avanço tecnológico, geração de empregos e Brasil protagonista no setor automotivo. Mas, ao fazê-lo, ignoram com eloquência as denúncias estruturais que acompanham o projeto.
A estratégia parece ser clara: inaugurar primeiro, lavar a imagem depois — ou talvez até ignorar o processo em curso. Ao trazer o presidente Lula para a cerimônia, confere-se legitimidade política a uma empresa que, até agora, não foi responsabilizada de fato. O Estado, ao se tornar palco da inauguração, arrisca-se a agir como coadjuvante cúmplice do crime.
É imprescindível que, na retórica oficial, não se omita que a BYD está respondendo judicialmente por tráfico humano, por danos coletivos e por ter submetido trabalhadores a condições degradantes. Ao contrário: as autoridades devem exigir transparência, fiscalização independente e cumprimento imediato de sanções.
Trabalho análogo à escravidão e tráfico de pessoas: crimes contemporâneos que persistem nas engrenagens do capital
Embora a escravidão formal seja abolida há mais de um século no Brasil, o “trabalho escravo contemporâneo” permanece uma ferida aberta na sociedade. Ele se manifesta quando há:
• restrições à liberdade de locomoção (exigência de permissão para sair, retenção de documentos);
• jornada exaustiva ou forçada sem descanso adequado;
• condições degradantes de alojamento, higiene e segurança;
• exploração via dívida ou cláusulas contratuais abusivas que agravam a dependência do trabalhador.
O tráfico de pessoas se insere no mesmo continuum: ele envolve o transporte, recrutamento ou alojamento de pessoas com vistas à exploração forçada. Quando se lida com trabalhadores trazidos de outro país sob cláusulas opressivas e dependência econômica, estamos justamente no terreno desse crime.
Assim, o processo do MPT acusa a BYD de tráfico de pessoas, uma denúncia grave que exige investigação, responsabilização e transparência pública e não desculpas corporativas ou ações protocolares.
Os riscos de legitimar uma empresa ainda sob investigação
Quando o Estado — por meio do presidente da República, ministros e governadores — se presta de cena para um evento como esse sem exigir que todos os questionamentos sejam respondidos, legitima-se uma narrativa de impunidade:
1. Naturalização das promessas: cria-se a aura de que “fato consumado” deve se sobrepor às denúncias pendentes.
2. Pressão política sobre os órgãos fiscalizadores: pode-se acuar o Ministério Público do Trabalho, auditores e órgãos independentes a aceitar soluções brandas.
3. Custo simbólico irreversível: a presença do Executivo federal endossa a BYD como empresa bem-vista, ofuscando o sofrimento dos trabalhadores envolvidos.
4. Precedente perigoso: passa-se a mensagem de que grandes investimentos estrangeiros podem conviver com vulneração de direitos, contanto que sejam “politicamente bem embalados”.
Por tudo isso, é fundamental que entidades da sociedade civil, sindicatos, órgãos de fiscalização e imprensa atuem com vigor: questionar, acompanhar o andamento do processo de R$ 257 milhões, exigir que se tornem públicos os contratos e que a BYD comprove, de modo transparente, que jamais apoiou ou compactuou com práticas abusivas.
Inaugurar não basta, é preciso purgar o passado
A inauguração da fábrica da BYD em Camaçari pode ser colocada como marca histórica de industrialização verde no Nordeste. Mas ela também traz consigo essa sombra gritante. Ignorar essa sombra é transformar o discurso do progresso em cosmética moral.
Se o Brasil almeja ser protagonista no setor automotivo sustentável, que o faça com integridade; que cobre da BYD — e de qualquer outra empresa — responsabilidade plena, compromisso com os instrumentos de justiça do país e reparação às vítimas. Só assim a inauguração terá sentido além da foto institucional.