Cadernos de receitas resistem ao tempo e revelam culinária mineira liderada por mulheres

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São os cadernos de receitas com folhas amareladas e rabiscadas à mão que que materializam a cultura alimentar de Minas Gerais (Arquivo pessoal)

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Mais do que registrar sabores passados de geração em geração, os cadernos de receitas revelam como as mulheres protagonizam a gastronomia mineira ao longo dos anos. Folhas amareladas e rabiscadas à mão materializam a cultura alimentar do estado, mas também as lembranças, os cheiros, histórias e afetos construídos em meio às montanhas de Minas Gerais. Neste sábado (5/7), Dia da Gastronomia Mineira, celebramos o pioneirismo das mulheres cozinheiras, suas trajetórias e legados.

Dona Lucinha, representante da cozinha mineira raíz, por exemplo, transformou a culinária e a arte de cozinhar em projeto de vida. Marcia Clementino, filha da cozinheira, lembra do zelo da mãe com as receitas que fizeram parte da vida dela – e que agora ajudam a explicitar o protagonismo feminino na gastronomia de Minas.

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“Minha mãe sempre foi muito ligada em cultivar e preservar a tradição e as receitas de raiz. Os cadernos de receitas da nossa família passavam de mãe para filha”, lembra.

“Vale ressaltar que as receitas daquele tempo eram mais de doces e bolos. As receitas de arroz com feijão, de todo dia, não eram encontradas nesses cadernos porque normalmente as cozinheiras, que eram analfabetas, é que faziam, e elas eram peritas na arte dos sabores, alquimistas mesmo. Elas não usavam receitas, aprendiam muito por simbiose”, explica Marcinha.

“A História da Arte da Cozinha Mineira por Dona Lucinha” foi lançado em 2001
(Secult/Divulgação)

Lucinha faleceu em 2019, mas seu legado para a gastronomia mineira é permanente. Fundadora de quatro restaurantes, com unidades em Belo Horizonte e em São Paulo, ela ainda publicou um livro com as principais receitas que fazem parte da sua história com a cozinha, tornando acessíveis os seus saberes e segredos.

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“Quando a mamãe demonstrou esse interesse de trazer as receitas para um livro, livro este que especula historicamente a cozinha mineira, eu achei que não seria possível. Ela tinha 11 filhos, imagina quantos genros noras e netos. Além, claro, de quatro restaurantes”, disse.

‘Muito mais que um livro de receitas’

“Ou seja, a vida dela era muito atribulada, e ela ainda querendo escrever livro. E ela se superou! Achei ela fazendo um desenho à mão da evolução dos fogões de Minas Gerais ao longo do tempo. Ela queria muito mais que apenas um livro de receitas”, relembra a filha de Lucinha.

“Tenho um manuscrito que a gente achou dentro das coisas dela, de dicas de cozinha e uma receita de chá de maça com maracujá. Trabalhei com ela intensamente na produção do livro, mas a todo momento que encontro um recorte do jornal, alguma anotação, eu continuo, seis anos após a morte dela, me surpreendendo com coisas dela. Ela se tornou uma mulher quase inesgotável, a todo momento ela me surpreende, e olha que eu achava que conhecia tudo dela”, diz a filha.

Lucinha lançou livro que especula historicamente a cozinha mineira (Reprodução)

Afeto que conforta corpo e alma

Historiadora com extensa pesquisa sobre a gastronomia e culinária de Minas Gerais, Sônia Maria de Magalhães diz que a comida mineira é a “melhor do Brasil” por ser feita “com afeto que conforta o corpo e a alma”. Ela explica que as receitas anotadas à mão desvendam as vivências e o protagonismo das mulheres na cozinha.

“Elas são testemunhos de momentos de celebrações familiares. Reúnem gerações, evocam sensações, lembranças e emoções em cada receita que é testada e reavivada na cozinha. Celebram tradições e reforçam laços identitários”, observa a professora de História da Universidade Federal de Goiás.

Formada em Ouro Preto, Sônia destaca como os cadernos de receitas apresentam um universo peculiar sobre as Minas Gerais do final do século XIX e início do XX. Esses documentos históricos ajudam a entender as técnicas, os modos de fazer, os utensílios, raízes étnicas, tradições, memórias e identidades da comida mineira.

Sônia é autora de livro que desvenda a mesa mineira nos últimos séculos
(Divulgação)

Nas palavras dela, “a escrita culinária descortina o mundo das mulheres mineiras em seus ofícios de cozinheiras/doceiras/quitandeiras, protagonistas, detentoras de conhecimentos aprimorados que implicam o domínio da escrita, leitura e interpretação de texto, capazes de decifrar os tempos de preparação dos pratos, os cálculos matemáticos para seleção dos ingredientes e das estimativas das medidas e, inclusive, desvelar os ‘segredos’ ocultos nos receituários”.

“Ao longo das minhas pesquisas, que realizo desde a graduação na Universidade Federal de Ouro Preto, verifiquei que a base da comida mineira não passou por mudanças importantes ao longo do tempo. Ela guarda na sua essência ingredientes simples e acessíveis para a confecção dos pratos, sejam os doces como os salgados. Com aproveitamento intenso dos produtos cultivados nas roças, pomares, hortas e criação de animais, sobretudo porcos, aves”, diz.

“A cozinha é tradicional na sua essência, mesmo incorporando novidades. É nessa singeleza e riqueza que se encontra a resposta para a pergunta: Por que a comida mineira é a melhor do Brasil? É melhor porque é feita com afeto que conforta o corpo e a alma”, completa a pesquisadora.

‘Ajudou a minha casa a ter cheiro de lar’

Neste 5 de julho, Dia da Gastronomia Mineira, a mãe da professora Isabel Albuquerque completaria 86 anos. Conhecida por suas “mãos de fada”, Maria Isabel deixou um legado alimentar muito forte, além de sabores que estão presentes até hoje na mesa da família Albuquerque, em Belo Horizonte.

“Resolvi anotar as receitas antes de casar, em 1995. Eu queria aprender a cozinhar e gostaria de aprender com os sabores da minha mãe. Eu tinha o costume de cozinhar junto com ela porque queria aprender alguns pratos. Ela cozinhava, eu ajudava e, com isso, ela ia me ensinando”, relata a professora de 51 anos.

A receita de broa de fubá da Maria Isabel é tradição na família Albuquerque (Arquivo pessoal)

Isabel registrou no caderno, com sua caligrafia impecável de professora de língua portuguesa, receitas de quitutes preparados com carinho pela mãe dela, como tortas, bolos, broas e rosquinhas. Segundo Isabel, além de alimentar o corpo, essas receitas fazem com que ela se sinta mais próxima da mãe até hoje.

“O caderno representa, e representou, levar um pouquinho do cheiro da cozinha dela para minha casa. Ele ajudou, no início do meu casamento, a deixar a minha casa com cara de lar, porque me lembrava a casa da minha mãe”, relembra ela.

Cadernos de receita: ferramentas de memória

Foi pensando em materializar as experiências culinárias que fazem parte do seu cotidiano e deixar esse legado na família que pretende construir que a publicitária e artista mineira Elisa Bax decidiu fazer, à mão, o próprio caderno de receitas.

O projeto pessoal, que começou como uma forma de guardar as memórias afetivas que ela tem com o namorado, chamou a atenção de milhares de pessoas nas redes sociais.

“Meu namorado ama cozinhar, e muitos dos nossos melhores momentos foram na cozinha. A ideia era criar um livro de recordações, reunindo nossas receitas favoritas. E, numa era tão digital, acho que ter memórias físicas, capazes de passar de geração em geração é o verdadeiro luxo, né? Não esperava que esse projeto fosse ganhar tanta proporção! Estou muito feliz com o resultado”, celebrou a artista.

Assim como na maioria das famílias mineiras, na de Elisa, existem algumas receitas que são tradicionais, como a de ambrosia que não pode faltar em nenhum almoço na casa da avó dela.

Receita ilustrada de French Toast (Arquivo pessoal)

Para deixar um legado aos futuros netos, a publicitária decidiu, então, eternizar as receitas que são comuns no seu dia a dia, como hambúrguer, rigatoni alla vodka, panquecas e french toast.

“De vez em quando eu faço dieta, então eles também vão encontrar uns wraps de frango perdidos por lá”, se diverte. “Para mim, isso tem tudo a ver com manter a família unida, passando histórias de geração em geração…com meu toque de humor que não pode faltar! Quero muito que o meu caderno tenha esse valor afetivo, que seja algo que meus netos façam questão de guardar e, quem sabe, brigar por ele”, brincou ela.

Segundo a historiadora e pesquisadora Sônia Maria de Magalhães, por muito tempo, esse patrimônio culinário se tornou muito cobiçado em Minas justamente por suas páginas preservarem heranças culturais que celebram tradições e identidades na preparação das comidas.

“Nas suas páginas percebe-se esse outro tempo feminino, íntimo e cotidiano”, conclui Sônia.

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Larissa Reis

Graduada em jornalismo pela UFMG e repórter da Rede 98 desde 2024. Vencedora do 13° Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, idealizado pelo Instituto Vladimir Herzog. Também participou de reportagens premiadas pela CDL/BH em 2022 (2º lugar) e em 2024 (1º lugar).

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