A Câmara dos Deputados aprovou, em tom de urgência e com rara unanimidade, o chamado ECA Digital, um projeto de lei que, em tese, pretende proteger crianças contra conteúdos nocivos na internet. A intenção soa nobre, quase irretocável: combater assédio, pornografia, exploração, exposição precoce e outras chagas digitais que rondam a infância. Até aqui, quem discordaria?
Mas é preciso tirar a maquiagem desse consenso. O diabo, como sempre, mora nos detalhes.
A proposta amplia o poder do Estado, e de uma futura agência reguladora autônoma, para determinar o que pode ou não circular nas redes. Em nome da “proteção de menores”, abre-se a brecha para que plataformas sejam obrigadas a remover conteúdos sem ordem judicial. Parece pouco? É a semente da censura, plantada em solo fértil.
Hoje o alvo é a pornografia infantil, um inimigo óbvio e justo. Amanhã, quem garante que não serão opiniões políticas, críticas a autoridades ou conteúdos incômodos ao poder? A linha entre defesa da infância e controle do discurso público é mais fina do que se imagina.
O argumento paternalista
É claro que crianças precisam de amparo, e o ambiente digital está longe de ser um playground inocente. Mas a responsabilidade primeira é da família, não do Estado. A lei transfere para burocratas e algoritmos uma missão que deveria começar em casa, com diálogo, supervisão e educação digital.
Ao empoderar uma nova estrutura estatal para “vigiar” conteúdos, corre-se o risco de transformar o que era proteção em paternalismo sufocante, e de quebra, criar mais um balcão de poder onde grandes plataformas e governos negociam os limites do que podemos ver e dizer.
A aprovação quase sem divergências no Congresso deveria soar como um alarme, não como aplauso. Quando governistas e opositores encontram um terreno comum rápido demais, quase sempre é porque o custo do acordo será pago pela sociedade, em parcelas longas e pesadas.
O combate à “adultização” é legítimo. Mas a lei que nasceu com esse nome pode se tornar um cavalo de Troia da regulação digital. Sob o pretexto de proteger crianças, acabamos legitimando mecanismos de censura preventiva, que depois servirão para calar vozes críticas, restringir o debate e domesticar as redes sociais.
A boa intenção é o verniz. A consequência pode ser um ambiente menos livre para todos. Proteger a infância é prioridade, sim. Mas não ao custo de transformar o país em tutor digital de seus cidadãos. O risco de que essa lei vire uma porta aberta para a censura é real, e a democracia no Brasil já tem cicatrizes demais para se arriscar a ganhar mais uma.