Há temas que assustam o debate público. E não é porque são complexos, é porque revelam o quanto somos covardes diante da realidade. Um desses temas é a internação compulsória de pessoas em situação de rua, dominadas por drogas ou álcool, vagando em sofrimento visível pelas cidades. Falar disso ainda soa como heresia num país que confunde compaixão com omissão e confunde liberdade com abandono.
Sim, eu sei, a visão assistencialista ainda não está pronta para discutir isso com franqueza. Preferimos empurrar o problema para o beiral da calçada e fingir que o Estado não pode agir. Mas o fato é que já passou da hora de a internação compulsória ser tratada como dever do poder público, e não como tabu.
Liberdade, ou abandono
A rua, em muitos casos, já não é escolha. É consequência de um corpo e de uma mente tomados pela dependência, ou pela doença, ou pela ausência completa de estrutura. Ninguém em surto psicótico, tomado por crack, com o corpo em ruína e a alma partida, está exercendo “autonomia”. Está apenas sobrevivendo, sem lucidez, sem discernimento, sem chance de recomeço. E é aí que o Estado precisa agir, não como carcereiro, mas como tutor temporário da dignidade humana.
A Lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, prevê a internação compulsória, desde que com laudo médico, decisão judicial e comunicação ao Ministério Público.
Não é prisão, é proteção. Não é repressão, é dever.
Mas, claro, o diabo mora na execução, e o Brasil é mestre em criar boas leis que ficam sem alma e sem leito.
Algumas cidades tiveram coragem de enfrentar o debate.
Florianópolis, por exemplo, aprovou em 2024 um projeto que permite a internação compulsória de pessoas em situação de rua que se recusem ao tratamento, com acompanhamento médico e jurídico. Em Curitiba, a proposta voltou à Câmara este ano, inspirada em experiências de Porto Alegre, onde a chamada “internação humanizada” possibilita que familiares ou profissionais de saúde peçam o acolhimento de dependentes graves.
Há também modelos internacionais, como a Kendra ‘s Law, em Nova York, que autoriza o tratamento compulsório ambulatorial sob critérios rigorosos e revisão judicial constante. Nenhuma dessas medidas é perfeita, mas todas partem de um princípio básico: a vida tem mais valor que o discurso.
E as evidências mostram que ignorar o problema é muito mais caro. Pesquisas médicas indicam que despejos forçados e abordagens sem tratamento aumentam a mortalidade e os custos sociais. Já o tratamento assistido, com reabilitação e moradia acompanhada, reduz reincidência e melhora o quadro de saúde pública.
Belo Horizonte vive seu próprio colapso silencioso
A capital mineira assiste ao crescimento de pontos de uso de drogas, à ocupação de praças e viadutos, a surtos de violência, furtos e intimidações. A população teme, os comerciantes se trancam, e o poder público observa, preso entre a ideologia e a omissão.
É hora de romper o ciclo da hipocrisia. BH precisa de uma política de internação compulsória responsável, que una critérios médicos, acompanhamento jurídico e suporte social.
Não se trata de varrer gente, como alguns insistem em rotular, é resgatar vidas. Não é limpeza urbana, é limpeza de consciência.
A cidade precisa ampliar a sua rede de ajuda, criar leitos específicos, fortalecer abrigos e moradias assistidas. Mas também precisa ter coragem para agir nos casos em que o indivíduo perdeu completamente a capacidade de decisão.
Se Nova York, Porto Alegre e Florianópolis entenderam que há limites para a “liberdade na miséria”, por que BH insistiria em romantizar o sofrimento?
A internação compulsória não pode ser punitiva, nem improvisada. Deve ser medida extrema, cercada de rigor técnico, mas também de humanidade. Quem se opõe com o argumento de que “viola direitos” esquece que a omissão também é violação, e talvez a mais cruel de todas. Abandonar um dependente químico à própria sorte, deixá-lo definhar em público, é uma forma sofisticada de tortura coletiva.
BH precisa enfrentar o tema sem medo dos rótulos. Tem de garantir o direito à vida, inclusive quando o indivíduo, em surto ou dependência, não consegue mais exercê-lo por conta própria. Chegou a hora de trocar o discurso pela ação, a compaixão estéril pela política efetiva.
Não defendo cárcere, defendo cuidado. Defendo o Estado que age, que protege, que resgata. O Estado que entenda, que a liberdade só tem valor quando há lucidez para exercê-la. A internação compulsória, se bem aplicada, não é retrocesso, é ato de dignidade. É o momento em que o poder público deixa de assistir à tragédia e passa, enfim, a enfrentá-la.
Belo Horizonte merece essa coragem.
